segunda-feira, 21 de julho de 2008

Espaço para mexer os braços


Aprecio especialmente esta ilustração. Transmite uma sensação de silêncio, de insuperável isolamento. Nenhuma abertura fende o casco da nave, não se esvai o mais económico fio luminoso. A falta de janelas indica claramente tratar-se de uma nave de longo curso: só nelas o cenário permanecerá imutável, fixo nas vigias como uma pintura jocosa. A nave tem asas, promessa de uma aterragem com manobrabilidade atmosférica. Tal como não se vêm aberturas, não se vê também qualquer insignia, slogan publicitário emblema corporativo. Ou o aparelho está no espaço interplanetário há tempo bastante para que o bombardeamento de partículas tenha queimado qualquer tinta aplicada, ou trata-se de um empreendimento de olhos postos apenas no futuro, livre dos constrandimentos contemporâneos.

E imaginar as pessoas que viajem no seu interior; sim, porque não é possível acreditar numa nave robot, onde os mecanismos substituíram completamente o espírito de descoberta e exploração. Não são ainda os anos do comodismo, os anos 90 do século XX, ou os primeiros desta década.

Recordo-me das palavras de Heinlein, a abrir um dos seus contos mais improváveis, Gentlemen, Be Seated (quem o leu, não pode deixar de sorrir com este título): "It takes both agoraphobes and claustrophobes to colonize the Moon. Or make it agoraphiles and claustrophiles, for the men who go out into space had better not have phobias. If anything on a planet, in a planet, or in the empty reaches around the planets can frighten a man, he should stick to Mother Earth. A man who would make his living away from terra firma must be willing to be shut up in a cramped space-ship, knowing that it may become his coffin, and yet he must be undismayed by the wide-open spaces of space itself. Spacemen - men who work in space, pilots and jetmen and astrogators and such - are men who like a few million miles of elbow room".

E são cada vez menos...

domingo, 20 de julho de 2008

Suspensos no vazio


Foi há precisamente 39 anos.

Muitos disseram que a FC morrera nesse momento, tocada pelos dedos frios da realidade. Crescemos num mundo que nos prometeu as estrelas, estações orbitais, colónias planetárias, naves-geração... Suspensos no vazio, vimos o esvaziar dessas promessas. Alguém disse, certa vez, que o facto de termos abandonado as estrelas dá razão aos imbecis das teorias de conspiração que apagam a história com o passar ao de leve da esponja da estupidez.

Hoje à noite vou sentar-me debaixo das estrelas, a devolver o olhar frio da luz cheia, procurando atravessar com os dedos a distância inalcançável que um dia pareceu tão simples de cruzar.

E lembrar-me da história de D. D. Harriman. Dos tempos em que a FC era uma promessa de futuro...

domingo, 13 de julho de 2008

Bruce Holland Rogers: Visita Cancelada



Infelizmente, o autor norte-americano Bruce Holland Rogers (Pequenos Mistérios, Livros de Areia, 2007), que ia estar presente em Portugal para leccionar um curso de verão de Escrita Criativa na Universidade Nova de Lisboa, para além de participar numa sessão sobre Micro-Ficção na Livraria Pó dos Livros com José Mário Silva, teve de cancelar a sua deslocação ao nosso país, por motivos pessoais. Rogers, que esteve presente no último Fórum Fantástico, está disposto a regressar a Portugal para repetir a experiência. Resta-nos desejar que essa visita possa acontecer tão brevemente quanto possível.

The Quest (Jean-Claude Van Damme, 1996)



Foi em 1988 que o artista marcial belga Jean-Claude Van Damme teve o seu primeiro grande sucesso cinematográfico ao interpretar no cinema o papel de Frank Dux no filme Bloodsport. Dux, controverso artista marcial que no início dos anos 80 teria participado em várias competições secretas, algures na Ásia, e que seriam patrocinadas por organizações clandestinas, viria a trabalhar como coordenador de combates noutro filme de Van Damme, igualmente relacionado com competições clandestinas, desta feita para as elites financeiras de Los Angeles em Lionheart (1990).

Em The Quest, Dux colaborou com Van Damme na criação da história de mais um combatente que pretende participar numa competição a realizar no Tibete e que colocará frente a frente os melhores lutadores do mundo. Van Damme realiza este filme e, pesem embora as suas claras limitações nesse papel, consegue construir um objecto de puro entretenimento que, apesar de não satisfazer minimamente os espectadores de outros seus melhores e anteriores filmes (quando dirigido por mãos mais capazes), é redimido pela localização histórica que permite a Van Damme aliar cenários belíssimos (o filme foi parcialmente rodado na Tailândia) a um visual de época bastante curioso, ainda que não de todo fiel.



É desnecessário observar que Van Damme não é um grande actor; mas se a capacidade de representação não fica mal num filme de artes marciais, nunca é demais observar que a interpretação neste tipo de filmes é essencialmente uma performance física: o coração de um filme de artes marciais, ao arrepio dos demais filmes de acção, assenta essencialmente na estética do corpo em movimento, na perícia com que este é transformado numa arma e inserido numa coreografia letal. E, no terço final do filme, em que nos é dado assistir ao torneio, não faltam as performances excelentes de Peter Wong (Wu Shu) e César Carneiro (Capoeira), que se distinguem dos demais. Estamos ainda longe da explosão física que Tony Jaa introduziria em 2003 no já clássico Ong-Bak, e o suspense de quem chegará à final é totalmente esvaziado pelo uso demasiado frequente de uma estrutura repetida em excesso desde Bloodsport, mas os combates onde participam estes dois lutadores são magníficos exemplos da elasticidade e flexibilidade da carne.



Falhas à parte, a escolha do período histórico - 1925 - é inspirada, permitindo ao actor/realizador introduzir elementos próprios dos filmes de aventuras retro-pulp, como um ataque de piratas ao largo das ilhas Phi-Phi, onde nos é introduzido Lord Edgar Dobbs (Roger Moore), uma personagem saborosa e que o ex-007 constrói com gosto apesar de ter tornado público o seu descontentamento com o filme. Curiosamente, Moore é-nos introduzido no mesmo cenário onde o víramos como James Bond no igualmente clássico The Man With the Golden Gun (1974), onde as ilhas Phi Phi serviram como refúgio secreto de Scaramanga (Christopher Lee).



No entanto, o mais fascinante elemento que Van Damme introduz na história é o dirigível (blimp) que transporta o lutador alemão, Habby Heske, até à Cidade Perdida no tecto do mundo. E se este tem um papel diminuto no filme (e um final inglório) não deixa de lhe conferir uma nota de exotismo histórico que não deixará de ser apreciada pelos fãs de pulp fiction.

sábado, 12 de julho de 2008

50 Doors Into SF 04: A Asa Voadora do Spider Gang


A iconografia do pulp ou do retro-pulp baseia-se muitas vezes num anacronismo (retro)futurista. O sentido de aventura do romance histórico cruza-se com um tecno-futurismo sonhado mas nunca concretizado. A asa voadora de Raiders of the Lost Ark (1981), o biplano suspenso do Zeppelin em Indiana Jones and the Last Crusade (1989) ou o Zeppelin a atracar no topo do Empire State Building em Sky Captain and the World of Tomorrow (2004) representam projectos efectivamente existentes mas nunca concretizados. O retrofuturismo pulp é uma nostalgia pelo futuro inconcretizável, numa eterna infância histórica, de um momento concreto sempre no dealbar de um amanhã prometido.

Em 1937, a Republic Pictures apresentou o primeiro seriado em 15 episódios que adaptava as aventuras do herói dos comics criado por Chester Gould, Dick Tracy. Tracy, interpretado por um dos mais populares actores de serials, Ralph Byrd, procura impedir os esquemas criminosos do The Lame One, líder do denominado Spider Gang. Nos dois primeiros episódios, o sinistro vilão serve-se de uma gigantesca asa voadora equipada com canhões ultrasónicos (enormes altifalantes) para destruir a Golden Gate Bridge.

Lembro-me de ter visto este seriado na RTP, ao fim da tarde dos Domingos, algures em finais dos anos 70. Dele retive sempre a Asa Voadora e a ponte a ser bloqueada por um dos camionistas a soldo dos malfeitores, que assim procurava frustrar o plano de Tracy de obstar à vibração da estrutura ao sobrecarregá-la com centenas de camiões . Os cliffhangers que terminavam cada um dos episódios eram verdadeiramente empolgantes, com Tracy a pilotar um avião que explodia contra uma ponte, numa lancha a ser esmagado entre dois navios, amarrado na caixa de carga de um camião que tombava de um desfiladeiro. Os automóveis eram magníficos, as cenas de pancadaria faziam-nos querer imitar os nossos heróis mas, pelo menos para mim, foi sempre a Asa Voadora que definiu aquela série. Um estilhaço do Futuro que se cravava na monotonia monocromática do presente.

quinta-feira, 10 de julho de 2008

Hierarquias


Eis a capa do primeiro exemplar de uma nova revista de fantasia. Corria o ano de 1968 e o género começava a separar-se da ficção científica. A fantasia, apesar de contar com anos de existência, era considerada ainda um género emergente, na sua infância, daí (na minha opinião) a acertada escolha da ilustração de capa. Tratando-se de uma publicação nova, havia que puxar dos pergaminhos, dos nomes grandes do género. Há um certo prazer maldoso em identificar aquele terceiro nome, modesto e quase envergonhado.

Para aqueles que acham que a história da Fantasia começou com Ele.

quarta-feira, 9 de julho de 2008

Importa-se de repetir?

"O mundo assistiu, nestas últimas horas, a acontecimentos que não consigo descrever. Ainda não sabemos bem o que se passou, nem como se passou, mas uma coisa podemos afirmar com toda a certeza: às últimas horas do dia de ontem, uma bomba de características nucleares explodiu sobre Roma. Desconhecemos se há sobreviventes, não sabemos se há feridos, podemos pressupor que há mortos!"

Jaime Fernandes
in O Fim dos Tempos, p.189 (Livros d'Hoje, 2008)

terça-feira, 8 de julho de 2008

Para marcar na agenda


A morte do futuro


Uma sociedade que deixa de sonhar o futuro, é uma sociedade sem futuro, escreveu certa vez Norman Spinrad, e as suas palavras deviam ser gravadas em pedra e afixadas em cada esquina. Para nós, que crescemos no século XX, um dos instrumentos de sonhar o futuro sempre foi a ficção científica. Mas para aqueles que cresceram na primeira metade do século, esse axioma é ainda mais verdadeiro: no seu tempo de vida, puderam testemunhar a concretização de muitos dos futuros prometidos, e a frustração de muitos mais.

Um dos mais dolorosos foi certamente a privação das estrelas. O programa espacial nasceu nas páginas de FC, se não como projecto concreto, como promessa e aspiração legítima da humanidade. A chamada Conquista do Espaço, alimentada pela corrida desenfreada entre os Estados Unidos e a União Soviética, alimentou a imaginação de milhares de milhões de pessoas um pouco por todo o mundo. Diz-se que, em 1969, todas as televisões do mundo ocidental estavam ligadas quando a 20 de Julho o Módulo Lunar pousou silenciosamente na superfície lunar. O impacto desse acontecimento é quase incompreensível para as novas gerações: a ideia de que alguém - um ser humano - punha pela primeira vez o pé num mundo alienígena, num corpo celeste que não a Terra.

Quem esteve presente na sessão de Sábado em Telheiras, pode ouvir Martin conjecturar que a (tantas vezes anunciada) morte da Ficção Científica ter-se-á ficado a dever à morte do sonho do espaço. Sem esse objectivo grandioso e inultrapassável (pese embora as lamúrias tecnofóbicas do Sr. Saramago), falta um fio condutor, um núcleo de agregação de um imaginário colectivo partilhado.

Esta capa da edição de Março de 1958 da revista REAL for men ilustra bem o sonho de conquista espacial. Os módulos colonizadores preparam-se para ultrapassar a Lua, rumo ao espaço interior. O seu particular desenho, com uma cabeça claramente definida, evoca outros tantos espermatozoa em torno de um gigantesco óvulo planetário, traduzindo a ideia de uma fecundação do universo pela humanidade. E, é sabido, a fecundação é premissa de futuro.

segunda-feira, 7 de julho de 2008

RIP Thomas M. Disch (1940-2008)


Thomas M. Disch suicidou-se na sexta-feira, dia 04 de Julho, segundo informações avançadas por Ellen Datlow, alegadamente por não ter conseguido ultrapassar a morte do seu colaborador Charles Naylor, com quem editou duas antologias, New Constellations (1976) e Strangeness (1977), antes da colaboração em Neighbouring Lives em 1980.

Disch foi uma das vozes mais activas e marcantes da chamada New Wave da ficção científica, e títulos como The Genocides (1964), Camp Concentration (1968), 334 (1974), e On Wings of Song (1980) são presença obrigatória em qualquer listagem das obras incontornáveis do género. Disch nunca obteve o devido reconhecimento fora do ghetto, e as suas posições críticas em relação à espinha dorsal da ficção científica (chamou-lhe mesmo, literatura para crianças, num polémico ensaio incluído no volume Science Fiction at Large, que Peter Nicholls editou em 1976 e que chegou a ser um dos tomos mais consultados na minha biblioteca pessoal) nunca lhe granjearam grandes amores por parte do fandom. Todos aqueles que acompanharam George R. R. Martin nesta sua recente visita a Portugal, devem saber que foi Disch quem alcunhou Martin e os seus compadres como sendo o Labor Day Group, alegadamente mais interessados nos prémios atribuídos nas Worldcons do que no mérito literário daquilo que escreviam (o que mostra que até um dos mais inteligentes críticos do género se pode enganar).

The Dreams Our Stuff is Made Of: How Science Fiction Conquered the World (1998), a sua história do género é um livro de leitura obrigatória, tão entusiasmante de ler como qualquer uma das suas novelas, e tão infoarmativo como os seus mais acutilantes ensaios. Ensaios e novelas que nunca viram a luz de Portugal, pese embora a publicação entre nós de milhares de obras menores, de autores muito menos meritórios. Disch deixa a literatura de FC mais pobre, aos sessenta e oito anos, dos quais quarenta e seis dedicados à escrita do género. E quão lamentável é saber que morreu, como John Brunner antes dele, preocupado em ser despejado por não ter como pagar a renda.

Vivemos todos na sarjeta, escreveu Oscar Wilde, mas alguns de nós mantemos os olhos cravados nas estrelas. Tom Disch mostrou-nos algumas dessas estrelas.

sexta-feira, 4 de julho de 2008

George R. R. Martin em Telheiras


JULY 4 - No ringship today. Too bad. Earth ain't never had no fireworks that could match the nullspace vortex, and I felt like celebrating.

E assim foi que tive enorme honra e não menor prazer por partilhar a apresentação da Tormenta de Espadas com George Martin. Como a citação acima atesta, Martin não escreveu só Fantasia Épica, e tentei - com sucesso ou não, só quem assistiu o pode dizer - revelar um pouco mais de obras anteriores suas; obras anteriores aos seus anos televisivos em que trabalhou no renascer da série Twilight Zone (1985-1986), Beauty and the Beast (1987-1990) e no episódio-piloto de Doorways (1993), a série que ele mais desejava ter visto arrancar para um trilho de sucesso.

Mais tarde, ao jantar, compreendi o quão dolorosa continua ainda essa ferida. Claro que, dolorosa ou não, foi dessa ferida que brotou A Song of Ice and Fire, e o resto, como se diz por terras do Rei Bush, is history. Martin, como podem atestar os que estiveram presentes nos lançamentos de Lisboa e Porto, é um conversador cativante e foi uma experiência magnífica trocar com ele os nomes dos nossos autores e livros favoritos e constatar que partilhamos muitos dos gostos em termos de filmes e livros.

Amanhã é a vez de eu e o Rogério Ribeiro participarmos numa mesa-redonda com Martin onde debateremos tudo e mais alguma coisa relacionada com o horror, a ficção científica e a fantasia. Será na Biblioteca Municipal de Telheiras, por volta das 16h00. Uma vez que esta será a última sessão pública com a presença de Martin em Portugal, será também uma derradeira oportunidade para todos aqueles que ainda não tiveram o prazer de o ouvir ao vivo poderem participar também numa interessante troca de ideias com um dos melhores escritores do fantástico dos últimos tempos.

A foto é de Ray of Darkness e foi publicada no fórum da Saída de Emergência. Desde já me penitencio e agradeço por este uso não autorizado da mesma.

quinta-feira, 3 de julho de 2008

George R. R. Martin no Porto


The Prophet came out of the South with a flag in his right hand and an axe handle in his left, to preach the creed of Americanism. He spoke to the poor and the angry, to the confused and to the fearful, and in them he woke a new determination. For his words were like a fire in the land, and wherever he stopped to speak, there the multitudes arose to march behind him.

Se conhecem bem o vosso Martin, não deve ser difícil identificarem a citação que transcrevi acima (e não, não é da Song of Ice and Fire). Enfim, Martin é mais do que um profeta, não sei se trás ou não pendão e machado, e certamente não vem pregar o Americanismo. Mas vem do Sul (Lisboa), onde a sua oratória já inflamou centenas de entusiásticos fãs, e é bem certo que onde quer que pare para apresentar o mais recente volume da sua saga épica, erguem-se multidões que empunham os volumes novinhos em folha para serem autografados.

Eu também já tenho os meus aqui numa saquinha e, com grande trepidação, vou arrancar agora de carro para o Porto onde vou ter o enorme prazer de apresentar George R. R. Martin no Auditório da FNAC do Norte Shopping, logo mais, por volta das 18h30. Portanto, legiões de fãs do Martin a norte do Mondego, ponham-se em marcha e ajudem a encher o auditório (o que não deve ser difícil, pois mal cabe lá meia centena de pessoas). Ao mesmo tempo, é uma óptima oportunidade para conseguirem um exemplar autografado da Tormenta de Espadas, já que o volume só chega às livrarias portuguesas com a canicula de Agosto.

Vejo-vos por lá.

quarta-feira, 2 de julho de 2008

Náufrago do futuro


Há qualquer coisa de hipnótico nesta capa; a figura humana, o último astronauta, é quase imperceptível na paisagem. É o foguete cintilante que nos prende o olhar, não o homem. A promessa de um futuro tecnológico que o foguete contém é desmentida pelos clarões nucleares que rompem a superfície da Terra na noite silenciosa do espaço. O foguete é ao mesmo tempo uma ponte e uma jangada, destroços de um naufrágio planetário. A não ser que lhe falte combustível, nada indica que esteja avariado. E esse potencial de perfeito funcionamento serve apenas para realçar ainda mais a irrevogável solidão do astronauta.

terça-feira, 1 de julho de 2008

Blade Runner Ano 2: O Ano Pulp



Pois é. Quase sem darmos por ela, o Blade Runner cumpre hoje o seu primeiro aniversário. Ao contrário do que é normal, não vou fazer nenhum balanço do ano que passou. Aliás, os escassos 62 posts mal o justificam. Dizer apenas que foi um ano de experiência, de tentar descobrir como exprimir todos os meus interesses pessoais num blogue que queria essencialmente temático, procurando ao mesmo tempo prestar algumas informações relevantes quanto ao (ainda) tão mal-tratado Fantástico. Voltada esta página, começa hoje o segundo ano de actividade, que procurarei ser mais frequente e com actualizações mais relevantes. E, como tinha prometido num post anterior, o ano de 2008-2009 vai ser principalmente dedicado à pulp fiction.

E à pulp fiction em todas as suas vertentes: literária, televisiva, cinemaográfica, radiofónica e (nalguns casos contados) na banda desenhada. Usualmente associada ao entretenimento pouco exigente, escapista, voltado para a acção e a aventura, brutal, violento, racista e sexista, a ficção pulp tem ínsita uma riqueza de imaginação que lhe vem assegurando um fascínio insuperável ao longo dos últimos noventa anos. É certo que, folheando hoje as aventuras de Doc Savage, e confrontados com a violência dos seus conteúdos, estranhamos como pode essa revista ter sido concebida para crianças e jovens adolescentes; mas, ao mesmo tempo, confirmamos esse alvo demográfico pela forma expressa e enfática com que Kenneth Robeson afasta qualquer interesse sexual do Homem de Bronze, em construções frásicas cuja leitura nos embaraça, pois são de um homoerotismo latente.

No entanto, a ficção pulp, com os seus heróis perfeitamente recortados, os seus vilões incontornavelmente sinistros, as suas claras posições morais e moralistas, cumpriu uma função essencial num período histórico difícil, nomeadamente, a Grande Depressão dos anos 1930 (período que ficou para sempre associado ao visual e à iconografia pulp). Foi a década da ascenção dos regimes fascistas na Europa, das filas da sopa na América, dos gangsters e do New Deal. Foi igualmente a época em que os preços do entretenimento fizeram que a literatura pulp, barata de produzir, fosse a forma mais acessível de entretenimento e escapismo. A revolução industrial tinha democratizado a literatura, e a lei da oferta e da procura rapidamente gerou as obras que eram acessíveis a uma classe operária recentemente alfabetizada mas sem a capacidade de entender (ou suportar) as obras mais "eruditas" da literatura canónica.

Foi em 1896 que Frank Munsey decidiu dedicar a revista que publicava (The Argosy) unicamente à ficção popular. Para tanto resolveu servir-se do papel à base de polpa de madeira (processo desenvolvido por Friedrick Gottlob Keller em 1844 e popularizado em finais do século XIX), bastante mais barato, espesso, poroso e pouco durável, para criar aquela que foi a primeira revista pulp.

Como consequência directa, o tipo de literatura dado à estampa nessas revistas de grande formato e capa de cor berrante, ficou conhecido como pulp fiction, conceito para sempre identificado com o tipo de narrativas que supra referi, ainda que traduzidas para outros suportes: o celulóide, a prancha de banda-desenhada, a rádio ou a televisão. A ficção pulp abrangia um espectro exaustivo de histórias perfeitamente formulaicas e identificáveis: as histórias desportivas, as aventuras nos mares do sul, o western, a espionagem; as aventuras aéreas, a guerra aérea, as aventuras na selva, as aventuras no Norte de África, as explorações Árcticas, o Perigo Amarelo, as aventuras do Extremo Oriente, o Ocultismo, o Horror, as histórias médicas, etc... A proliferação das revistas pulp temáticas foi precursora da criação de vários géneros literários, muitos deles abatidos pelo desinteresse no pós-guerra. Destes, a ficção científica foi possivelmente o único género criado pelas pulps, opinião perfilhada também por Don Hutchinson no seu importante (e recentemente revisto - 2007) The Great Pulp Heroes (1996), e um dos poucos (juntamente com o Horror, a Fantasia, o Policial e o Romance cor-de-rosa) a sobreviver pujante até à actualidade.


É difícil afirmar que a pulp fiction tenha alguma vez desaparecido. Com períodos intermitentes de maior ou menor popularidade, foi acompanhando o desenvolvimento da cultura popular do século XX, ora assumindo maior premência no cinema (os saudosos serials que antecediam a projecção do filme principal), ora na televisão (as séries dos anos 50, que os substituíram), ora testemunhando um renascimento literário (a extinta colecção da DAW Books de lombada amarela dos anos 70), ora novamente no cinema (primeiro o fracasso do Doc Savage de 1975, depois o sucesso fulgurante de Star Wars em 1977 e Raiders of the Lost Ark em 1981). E, em cada uma das suas encarnações, soube captar fãs entusiastas como nenhum outro tipo de arte ou literatura (a não ser, talvez, o rock and roll). O sense of wonder, de extrema aventura, os super-heróis e as ameaças dos mais sinistros vilões que caracterizam a ficção pulp, garantem renascimentos periódicos impulsionados pelos leitores que buscam ansiosamente recriar aquela primeira sensação de descoberta de mundos de aventuras sem igual. James Bond, Dirk Pitt, Kurt Austen, Blade, The Gypsy, Preacher, Jason Bourne, etc... são os acuais descendentes de Doc Savage, do Shadow, do Operador #5, de Flash Gordon e Rocky Jones, de Tom Corbett, do Spirit e de tantos outros heróis inesquecíveis.


Tentativas de recriar esse emaravilhamento quase infantil podem assumir as formas de neo-pulp, retro-pulp ou pseudo-pulp, etiquetas que quero propor e desenvolver ao longo deste ano no Blade Runner. Mas, seja qual for a etiqueta a aplicar, a ficção pulp não deixa de ser, como tão bem sintetizou Don Hutchinson, "...calculatedly disposable literature that was too exciting to be respectable and too much fun to be taken seriously".

So, stay with me...

If you cut me, I still bleed four-color ink...


São palavras de George R. R. Martin, um autor americano que dispensa apresentações. Apesar de contar com inúmeros prémios e o reconhecimento ímpar de leitores, críticos e colegas de profissão como sendo o autor actualmente dominante no espectro da Literatura de Fantasia (e este actualmente refere-se ao período compreendido entre 1996 e o presente, o que não é feito nada modesto), Martin não renega as suas origens enquanto criança fascinada com os comics de super-heróis.

O encantamento dessas páginas impressas em painéis coloridos norteou a sua carreira desde as primeiras histórias e capas publicadas nos fanzines de banda desenhada, até à sua primeira venda profissional, em 1971, à revista Galaxy (onde Gardner Dozois, como slush reader, foi o primeiro a reconhecer o seu mérito). Daí para cá, as obras sucederam-se com qualidade inigualável nas áreas do horror (Fevre Dream de 1982 continua a encantar leitores pela abordagem que faz do tema clássico do Vampiro; ao passo que Skin Trade de 1989 é ainda considerado o melhor conto de lobisomens de sempre), da ficção científica (as aventuras de Havilland Tuf continuam tão actuais hoje como quando foram escritas nos anos 70 e 80) e, sobretudo, na fantasia onde a sua saga épica A Song of Ice and Fire (actualmente com 4 volumes de 7 projectados e a ser publicada entre nós pela Saída de Emergência) permanece inigualável pela qualidade literária, tratamento de personagens e detalhe colocado na construção do mundo de Westeros.

Pois é já daqui a menos de hora e meia que Martin estará presente no Restaurante do 7º piso do El Corte Ingles em Lisboa, para apresentar o 5º volume (da edição portuguesa) da sua saga. Visitando Portugal a convite da Saída de Emergência e da Épica - Associação Portuguesa para o Fantástico nas Artes, e contando com o apoio da Embaixada dos Estados Unidos da América, Martin estará acompanhado nesta sua primeira apresentação pública em Portugal por Safaa Dib, Vice-Presidente da Épica e Moderadora do Fórum do autor na página da SdE.

Na quinta-feira será a minha vez de partilhar o palanque com Martin no Auditório da FNAC do Norte Shopping, no Porto.

De referir ainda que é uma oportunidade única para conseguir um exemplar autografado do 5º volume português (A Tormenta de Espadas), cuja distribuição no circuito livreiro só se verificará a partir de 11 de Agosto.

Pode ainda consultar aqui e aqui o programa completo da visita de Martin.