quarta-feira, 16 de dezembro de 2009

Deja Vu: Gótica (Clara Tahoces, 2007)




Bico de Pena, 2008
Tradução de Catarina Fonte
ISBN: 978-989-621-072-4
302 Páginas

Clara Tahoces é uma conhecida “jornalista” espanhola, dedicada aos temas das ditas “ciências ocultas”, facto que transborda desconfortavelmente da composição desta sua quarta novela, galardoada com o Prémio Minotauro em 2007. Gótica é uma corriqueira história de vampiros – ou mais concretamente, vampiras – que pretende disfarçar a total falta de originalidade através de alguma desmistificação dos elementos canónicos dos não-vivos, como sejam a incapacidade de suportar a luz solar ou a impossibilidade de engravidarem. Porém, ao fazê-lo, faz tábua rasa de outras variações anteriores, por mãos de autores bem mais capazes, apresentando-nos uma descarada reinvenção da roda que em nada é beneficiada por uma trama de acção demasiado assente em coincidências e comportamentos ilógicos por parte das personagens. Os leitores de Anne Rice ou Charlaine Harris não encontrarão aqui nada de novo, mas os fãs entusiastas de Stephenie Meyer podem retirar algum prazer de uma versão (pouco) mais adulta de um tema similar.



Uma versão ligeiramente diferente deste texto surgiu na OS MEUS LIVROS #74, Abril de 2009

terça-feira, 15 de dezembro de 2009

Um Ansiado Regresso: As Correntes da Inquisição (Valerio Evangelisti, 1995)




Edições Asa, 2008
Tradução de Regina Valente
ISBN: 978-989-230319-2
256 Páginas



As Correntes da Inquisição” é o segundo dos nove volumes que Valério Evangelisti dedicou, até à data, ao Inquisidor-Geral do Reino de Aragão, Nicolas Eymerich; e, tal como o volume anterior publicado pela Asa em 2006, é um soberbo exemplo de como a exímia mescla de géneros literários – a Ficção Científica, o Romance Histórico, o Policial e o Horror – permite revitalizar uma literatura nacional (neste caso, a Italiana), ao mesmo tempo que reconhece a influência de Umberto Eco na adaptação das receitas genéricas à Literatura Erudita.

Baseado numa personagem real, à qual a formação em ciências Histórico-Políticas de Evangelisti dá corpo e dimensão, Nicolas Eymerich assume-se como uma das mais icónicas personagens da literatura fantástica, aplicando um intelecto portentoso à defesa de uma fé eminentemente irracional. É aí, porém, que reside o grande mérito de Evangelisti, que evita uma abordagem simples e simplista do fenómeno do mal e da religião, dois fenómenos tão intimamente ligados como gémeos siameses e, ao invés, explora as formas retorcidas pelas quais o pensamento racional reforça por vezes as ideias mais disparatadas. E que melhor panorama histórico poderia existir para confrontar a fé e o intelecto de Eymeric com o mal, do que a Alemanha Nazi e a Roménia de Ceausescu, dois cenários onde o mal foi racionalizado ao extremo?

Uma vez mais, é ao entrelaçar hábil de três cronolinhas concorrentes que a narrativa vais buscar toda a sua força, obrigando o leitor a percorrer caminhos de dor, sofrimento e razão que apenas a mente humana soube e sabe criar. Uma série a não perder.

Uma versão ligeiramente diferente deste texto surgiu na OS MEUS LIVROS #73, Março de 2009

segunda-feira, 14 de dezembro de 2009

Probabilidades Certeiras: O Ladrão da Tempestade (Chris Wooding, 2006)




Editorial Presença, 2009
Tradução de Miguel Romeira
ISBN: 978-972-23-4088-5
266 Páginas

Chris Wooding (nascido em 1977), autor bem conhecido dos leitores da Colecção Via Láctea, condensa nas escassas 266 páginas deste “O Ladrão da Tempestade” uma riqueza visual e criativa que os jovens autores nacionais publicados na mesma colecção não conseguem igualar em sagas de sete ou oito “tijolos”. Parte dessa riqueza visual emerge do cenário da cidade-ilha Orokos, sujeito a permanentes alterações por via da passagem das tempestades de probabilidades (uma ideia científico-ficcional que vai buscar ecos a Justina Robson, Aldiss e Dick) que tudo alteram à sua passagem, permitindo à narrativa fundir habilmente os registos de fantasia e FC. Mas não só; as referências a uma espécie tecnológica há muito desaparecida e a presença de um golem alado cibernético enriquecem definitivamente a aventura de Rail e Moa, dois jovens ladrões em fuga de um assassino implacável que pretende recuperar um instrumento da antiga tecnologia dos Fade que caiu em seu poder. Uma obra de qualidade superior, que nos faz desejar que toda a literatura infanto-juvenil fosse assinada por Gaiman, Reeves e Wooding.

Uma versão ligeiramente diferente deste texto surgiu na OS MEUS LIVROS #73, Março de 2009

domingo, 13 de dezembro de 2009

À Deriva no Tempo: A Máquina do Tempo Acidental (Joe Haldeman, 2008)




Europa-América, 2008
Tradução de Catarina Fonseca
ISBN: 978-972-1-06965-8
236 Páginas

Quando Matt Fuller apertou no botão REINICIAR do calibrador de que o professor Marsh o encarregara, nunca pensou acabar envolvido no extremo errado de uma investigação criminal, sentado frente a frente com Jesus numa teocracia tenebrosa ou transportado a um futuro que se assemelha bastante àquele que ele conhece. Nas mãos de Haldeman, porém, este acidental viajante no tempo vai conduzir o leitor pelos labirintos da vasta maleabilidade do real quando submetido às pressões da imaginação friamente lógica de um dos mais consistentes autores de FC. Volvidos quase dois anos sobre a publicação do anterior volume da Colecção Nébula, A Máquina do Tempo Acidental vem agora permitir esperança renovada quanto à continuidade de uma colecção que vinha dando a conhecer aos leitores nacionais algumas obras dos autores mais marcantes no género. Seja bem vinda de volta.


Este texto foi originalmente publicado na revista OS MEUS LIVROS #72, Fevereiro de 2009

sábado, 12 de dezembro de 2009

Sonhar o Impossível: A Física do Impossível (Michio Kaku, 2008)




Bizâncio, 2008
Tradução de Luís Leitão
ISBN: 978-972-53-0406-8
329 Páginas


O estudo do impossível, diz-nos Michio Kaku, professor de Física Teórica na Universidade de Nova Iorque e autor da teoria das cordas, abriu panoramas completamente novos para a ciência. Ora, se há género que sempre explorou as promessas de futuro que se escondem nos “impossíveis” da ciência, esse é a Ficção Científica. Nada mais natural, portanto, do que recorrer às tecnologias propostas pelos mundos da imaginação para estabelecer uma interessante hierarquia de impossibilidades, por vezes com resultados surpreendentes. Assim, servindo-se dos mais recentes conhecimentos na área da física moderna, e das mais inventivas tecnologias dos universos da FC, Kaku analisa a viabilidade científica de alguns tropos recorrentes da arte fantástica – a invisibilidade, as armas de raios, a viagem no tempo e a velocidade supraluminosa, os universos paralelos, o teletransporte, etc. – à luz do conhecimento actual e avança uma antevisão do que seria necessário para a sua futura concretização. Os resultados são fascinantes – a forma de efectivamente tornar invisível Harry Potter merecia ser impressa na contracapa dos volumes de Rowling – as anedotas que emergem do passado da Ciência são deliciosas, e a arte com que Kaku transforma um manual de física numa leitura imparável é digna de um mestre. Com a colaboração de Carlos Fiolhais na revisão dos aspectos técnicos da tradução, é um volume de leitura obrigatória para todos os entusiastas da Ciência e da Ficção Científica… mas muito especialmente para os outros.

Uma versão ligeiramente diferente deste texto surgiu na OS MEUS LIVROS #72, Fevereiro de 2009

sexta-feira, 11 de dezembro de 2009

Retrato Quântico de um País dos Trópicos: Brasil (Ian McDonald, 2007)




Gailivro, 2008
Tradução de Leonor Bizarro Marques
ISBN: 978-989-557-566-4
503 Páginas



Ian McDonald tem assinado algumas das mais brilhantes obras de ficção científica de lavra mais recente. Por isso, nunca antes foi publicado entre nós. Sem se sentir agrilhoado por um inclemente rigor científico, aplica no que escreve um rigor intelectual que desde logo distingue mesmo as suas mais fabulosas explorações. Por que com McDonald é sempre de explorações que se trata: de Marte no díptico DESOLATION ROAD, de África na saga da invasão da CHAGA, da Índia no recente RIVER OF GODS. Mas de um outro Marte, de uma outra África, de uma outra Índia… e agora, de um outro BRASIL. Ou, para ser mais correcto de uma miríade de potenciais BRASYS (com Y, como no título original) em coexistência quântica. Parece complicado? Mas não é. O que o leitor encontra abrindo este magnífico volume é uma viagem por três épocas da história do Brasil que nunca existiram ou virão a existir: um 2006 subordinado à febre dos reality shows, um 2032 hiper extrapolado da nossa realidade e um 1732 que serve de palco a uma recriação da célebre viagem Congo acima que Conrad nos legou, aqui em busca de um Kurtz jesuíta. A chave para esta pluralidade de mundos ancorados numa realidade Brasileira que se assume – com todas as suas contradições – como alma do tropicalismo, reside nas lâminas quânticas que permitem cortar o universo em finas camadas probabilísticas. McDonald escreve sobre o futuro assenhoreando-se daquela poesia visionária que encantou gerações de leitores de FC… BRASIL é a porta de entrada ideal para os demais leitores e, esperemos, um primeiro passo para a divulgação da obra de um dos melhores escritores dos últimos tempos.

Uma versão ligeiramente diferente deste texto surgiu na OS MEUS LIVROS #71, Janeiro de 2009

quinta-feira, 10 de dezembro de 2009

A prenda que o Black Peter vos devia trazer




Parece que foi ontem, mas passaram já quatro anos desde que as Edições Chimpanzé Intelectual se apresentaram ao mercado com um livro de contos de Ficção Científica e Fantástico. Foi um passo ousado para uma pequena editora recém-nascida, e cambaleante como costumam ser as primeiras incursões no inclemente mundo exterior. Mas os pés firmaram-se e foram ganhando força, os projectos foram-se acumulando e ganhando cada vez mais ousadia, interesse e qualidade.

Em 2009, a Chimpanzé Intelectual metamorfoseia-se em Escrit'orio Editora, um projecto mais ambicioso, e a designação que todos fomos aprendendo a apreciar serve agora de chancela a uma colecção de literatura fantástica que estreia sob o melhor dos auspícios com este BRINCA COMIGO E OUTRAS ESTÓRIAS FANTÁSTICAS COM BRINQUEDOS, uma breve antologia de contos temáticos que reune sob a mesma capa os melhores autores nacionais do género. João Barreiros, David Soares, Luís Filipe Silva e João Ventura assinam as quatro narrativas que nos propõem uma exploração em tons negros e cáusticos do mundo encantado dos brinquedos.

A antologia foi cuidadosamente pensada por Miguel Neto em torno da soberba narrativa titular (a única não inédita do volume), e todos os autores foram convidados a trocar ideias entre si para que não ocorressem repetições ou sobreposições temáticas acidentais. Chega-nos, assim, às mãos um precioso mosaico de contos perfeitamente apropriados a este período natalício, sempre enxameado de delicodoces brinquedos que não se comparam aos formidáveis companheiros de brincadeiras que estes quatro autores nos apresentam com inigualável mestria.

Certamente um dos livros do ano, e a prenda ideal para pedir ao Black Peter.

quarta-feira, 9 de dezembro de 2009

HOJE PORTUGAL... AMANHÃ O UNIVERSO 2-4/4


Há textos que se perdem na efemeridade de um momento. Isso é particularmente relevante quando o texto proposto pretende ser uma polémica. Sobretudo se uma polémica cuja intenção era a inserção num debate mais alargado em curso noutros blogues no momento da sua redacção. Daí que, passado o momento, não faça já sentido apresentar a conclusão do texto iniciado aqui nos moldes inicialmente previstos. Não quer isso dizer que o discurso iniciado vá ficar eternamente interrompido. Simplesmente, e por mero critério de oportunidade, verá a sua conclusão adiada para o resumo do ano que pretendo apresentar em 31 de Dezembro - aí as ideias deixadas orfãs encontrarão um ninho seguro onde se acolher e articular.

Depois da interrupção do ano passado, pretendo fazer acompanhar essa breve súmula de final de ano pelo meu top-ten pessoal de livros publicados durante o ano de 2009 em Portugal. Para refrescar a memória dos leitores - e a minha própria - decidi re-publicar aqui no Blade Runner as breves críticas (designação imprópria para o que não passa de meras resenhas, e que aqui tratarei como notas de leitura) que escrevi para a OS MEUS LIVROS durante o ano que está prestes a findar. São 20 textos sobre 20 livros muito desiguais, que poderão acompanhar aqui entre 11 e 30 de Dezembro, à razão de um por dia. Nenhum deles é extenso, mas sempre são uma dúzia de palavras mais longos do que as versões que receberam letra de forma na revista impressa.

E já agora, alguém reconhece o filme de que foi retirada a imagem que ilustra este post?

terça-feira, 1 de dezembro de 2009

Contagem Decrescente


Faltam 30 dias para terminar o prazo para apresentação de submissões para a versão nacional do THACKERY T. LAMBSHEAD POCKET GUIDE TO ECCENTRIC & DISCREDITED DISEASES que a Saída de Emergência vai editar em 2010. A antologia original, organizada por Jeff VanderMeer e Mark Roberts é já um objecto de culto um pouco por todo o mundo e a versão portuguesa, enriquecida com textos originais de produção nacional, constituirá certamente uma peça de colecção, única e inovadora.

O prazo de apresentação de originais está a correr desde inícios de Outubro e estende-se até 31 de Dezembro de 2009. Ao contrário do que vem sendo hábito em antologias anteriores, a qualidade das submissões recebidas até ao momento revelou-se bastante acima da média, pelo que não haverá razões que permitam ou justifiquem uma dilação do prazo final. Por isso, quem quiser ver-se perpetuado numa antologia onde pode partilhar o índice com Alan Moore, Neil Gaiman, China Mièville, Paul di Filippo, Jeff VanderMeer, Michael Moorcock e muitos, muitos outros autores de renome, deve lançar mãos à obra e aproveitar ao máximo este mês de Dezembro tão cheio de feriados.

Informações mais detalhadas podem ser encontradas aqui.

quinta-feira, 8 de outubro de 2009

Hoje Portugal... Amanhã o Universo (1/4)



João Seixas, Ricardo Duarte (moderador), Rui Baptista (Bela Lugosi is Dead) e David Soares. (Foto de Gisela Monteiro).

Por motivos de facilidade de leitura este texto foi dividido em quatro partes. Adverte-se que o mesmo contém expressões e opiniões susceptíveis de ofender um pouco toda a gente, pelo que se recomenda precaução na sua leitura ou, melhor ainda, evitar a mesma.

1 – A PROPÓSITO DE VAMPIROS

Todo o argumento coerente carece de uma linha condutora. É assim no ensaio, é assim na ficção. Mais uma das lições que parecem esquecidas, num panorama literário despido de contexto e referências. Vamos então escolher para fio condutor, o Vampiro.

No passado dia 19 de Setembro, a convite da Editora Objectiva, eu, o David Soares e o Rui Baptista, estivemos a falar de Vampiros, à hora das bruxas, no centro de Lisboa. A ideia, avançada pelos organizadores e pelo entusiástico moderador, Ricardo Duarte, foi a de que os vampiros estão na moda. Ideia que, como procurei expor numa das minhas intervenções dessa noite, está muito longe de ser verdadeira. Para compreender porquê, seria necessário reconstiuir a evolução do vampiro prototípico, do vampiro literário e cinematográfico, das suas representações populares, algo semelhante ao que Christopher Frayling fez no seu livro Vampyres: Lord Byron to Count Dracula (1991), prosseguido no volume Bram Stoker’s Dracula – Sucking Through the Century, 1897-1997 (1997) organizado por Carol Margaret Davison e actualizado de forma satisfatória pelas conferências realizadas em Budapeste em 2003 e que Carla T. Kungl coligiu parcialmente no volume Vampires – Myths and Matephors of Enduring Evil (2003).

Obviamente, seria um trabalho demasiado amplo e abrangente para um mero post, sobretudo um que está a ser redigido nos interstícios de prazos mais prementes e inclementes. No entanto, importa observar que independentemente das suas prováveis origens no folclore, nas tradições populares e na observação de alguns hábitos etológicos do reino animal, a figura literária do vampiro sofreu claras mutações ao longo do século e meio em que vem desfrutando de certa notoriedade e popularidade. Algumas dessas mutações representaram claras quebras com a tradição literária anterior, e merecem por isso ser destacadas, reclamando especial importância a transição do vampiro lânguido, faminto de companhia e presença humanas – dir-se-ia mesmo que faminto de humanidade – de Polidori e le Fanu, para o vampiro predador e violento de Stoker, e deste para o vampiro emasculado e anoréxico que aflorou pela primeira vez nas páginas de Anne Rice e domina o actual panorama literário. Obviamente, estas duas grandes rupturas emergiram dos seus próprios contextos históricos e culturais e por reacção a estes, moldando à sua maneira as sucessivas “modas” de vampiros bem como reacções à sua própria figuração, numa multiplicação de manifestações dessa figura prototípica. Tal como Nina Auerbach em Our Vampires, Ourselves (1995), podemos dizer “there is no such creature as ‘The Vampire’; there are only vampires”. Esta multiplicidade de vampiros, porém, mantém sempre uma afinidade de características essenciais que nos permite traçar a sua árvore genealógica e identificar as suas variações mais extremas como os vários vampiros psíquicos de Gaiman e Wilson, os vampiros tecnológicos de Star Trek (os Borg não são mais do que um sub-género de vampiros) ou os vampiros políticos de del Toro ou Simmons.

Uma das transformações mais subtis, e se calhar por isso menos notada (honra seja feita a Tomasz Warchol por chamar a atenção para ela em “How Coppola Killed Dracula”), foi aquela operada por Francis Ford Coppola na sua interessante adaptação de 1992: a origem da maldição de Drácula reside agora numa promessa de amor. Este prólogo que Coppola apensou ao texto original de Stoker, e que mergulha Drácula no reino do melodrama, não tardou a unir-se aos vampiros desdentados de Rice para dar origem a uma espécie híbrida e normalmente desinteressante. O vampiro deixa de ser um monstro sobrenatural, e passa a ser apenas mais um outcast, uma vítima da sociedade, tão digna de pena e comiseração quanto o original era de horror. I have crossed oceans of time only to find you, permanecerá como uma das mais pobres frases da história do fantástico, embora pareça ter influenciado sobremaneira os langores pseudo-góticos das novas gerações de fãs e não menos autores.

A estreia do filme de Coppola coincide com um momento de extrema popularidade da literatura de vampiros – em 1989, Nancy A. Collins tinha estreado a sua icónica Sonja Blue em Sunglasses After Dark, a série de novelas do vampiro St. Germain de Chelsea Quinn Yarbro atingia o oitavo volume em 1993 (Darker Jewels), Anne Rice voltava à carga com The Tale of the Body Thief (o último volume de alguma qualidade nas suas Vampire Chronicles, no ano anterior à estreia da adaptação cinematográfica de Interview With the Vampire, 1994), e Laurell K. Hamilton estreava a sua série Anita Blake com Guilty Pleasures (1993), provavelmente a mais imitada e influente das séries mencionadas. O fracasso de Buffy – The Vampire Slayer (1992) de Joss Whedon, seria redimido pela série epónima de 1997-2002, dando azo ao tenebroso mercado de pálidas imitações governado por Stephenie Meyer e outros sucedâneos menores como L.A. Banks, Richelle Mead, Tanya Huff, Charlaine Harris e quejandos.

Como acontece com quase todas as obras de ruptura, os textos de Stoker, Anne Rice, Hamilton ou Coppola, para além de originarem um novo contexto literário onde explorar este novo vampiro renovado, repositório dos medos, angústias, receios e preconceitos do seu zeitgeist, geraram uma vaga de imitadores surdos ao subtexto mas atentos às manifestações mais imediatas e “ruidosas”, num constante processo de filtração da originalidade até manter apenas aquele mínimo denominador comum sobre o qual Baudrillard nos alertava com grande presciência no meio de toda a estática pseudo-científica da sua filosofia. O que fica no coador não são os elementos arquetípicos ou prototípicos do vampiro, mas a familiaridade de uma estrutura desgastada e a busca de renovação de uma emoção perdida por parte do leitor.
(continua)

sexta-feira, 18 de setembro de 2009

Breve Antevisão


1. VAMPIROS

Os vampiros estão outra vez na moda. Parece que não se pode abrir um livro sem nos depararmos com umas presas afiadas a gotejar tinta de prosa púrpurina. Mas será realmente assim? Será que o surto de obras que surgiu em catadupa no seguimento da tenebrosa (no pior sentido) tetralogia de Stephenie Meyers trata realmente de vampiros? Será que se inserem no vasto catálogo da literatura fantástica? Estas são algumas questões que podem ser debatidas amanhã, 19 de Setembro, por volta das 23:30 no Largo Luís de Camões, em Lisboa. Trata-se de uma tertúlia subordinada ao tentador tema "A literatura fantástica e o universo vampírico", inserida no amplo Cordão de Leitura organizado pela editora Objectiva. Para além deste vosso escriba, estão confirmadas as presenças de David Soares, Rui Baptista e Pedro Sena Lino. A moderação é de Ricardo Duarte, e o livro The Srain (A Estirpe) de Guillermo del Toro e Chuck Hogan servirá de mote .



2. DAGON

Já está nessa enorme banca virtual que é a Internet desde 31 de Agosto. Surge em pleno clima de crispação com uma agenda muito concreta e é a mais recente revista on-line da área do fantástico. Infelizmente o resultado fica muito aquém das expectativas criadas, prometendo reavivar um certo abespinhamento por parte de um grupo de jovens autores cujo potencial permanece ainda latente...



3. SEGUNDA GUERRA MUNDIAL

Cumprem-se setenta anos desde o início da mais mortífera guerra do Século XX. As suas especiais caracteísticas ideológicas, técnicas, militares e estéticas fizeram dela um cenário priveligiado para a imaginação. Ao horror sucedeu-se o fascínio e ao fascínio a estilização de uma era. Aqui, no Blade Runner, vamos explorar algumas das obras onde a Segunda Grande Guerra serve de palco para o Fantástico, aproveitando a chegada do Outono para tentar arrancar de vez com as há muito prometidas Midnight Sessions.


4. O CÍRCULO DE LEIBOWITZ

Circunstâncias adversas têm-me mantido afastado da actividade do CÍRCULO, cujo peso tem recaído sobre os ombros mais do que capazes do Nuno Fonseca e da Cristina Alves. Este mês o círculo regressa à actividade plena, a 30 de Setembro, e com um livro incontornável no praticamente incipiente cânone da FC nacional: O Caçador de Brinquedos e Outras Histórias (1994) de João Barreiros. Oportunidade para dissecar um pouco a essência da ficção científica nacional, marcando também um primeiro passo no olhar mais atento sobre a actividade dos autores portugueses. Uma das fontes da crispação de que falava acima assenta na inexistência de um corpus crítico que permita definir um padrão de qualidade para a recepção das obras da área do fantástico. Procurei dar aqui a minha modesta contribuição para a criação desse corpus.

Tudo isto, no Blade Runner, a partir de 21 de Setembro.

quarta-feira, 22 de julho de 2009

Como lemos é como somos


A leitura é, para além de um acto de prazer, um exercício intelectual. É um jogo de possibilidades em que participam autor e leitor, o primeiro procrando enredar o segundo numa trama, o segundo procurando discernir os pormenores dessa trama. O que torna o jogo particularmente enriquecedor é que o leitor que procura as malhas da trama não as quer encontrar. Sabe que estão lá - afinal este jogo chama-se ficção - mas quanto melhor escondidas estiverem, melhor. Porque a invisibilidade das tramas, dos pontos em que a estrutura foi soldada, permite-lhe ir além da palavra escrita e penetrar naquele segundo grau de leitura que é a imersão na história, no drama, no conflito e desenvolvimento das personagens. Tropeçar nos buracos do enredo, onde a massa não foi bem colocada ou onde são perfeitamente visíveis os acabamentos toscos, detrai necessariamente do prazer do jogo. Pelo menos se queremos levar o jogo a sério, como leitores participantes, e não como meros leitores passivos.

Creio que antes poderíamos fazer a qualificação dos leitores passivos como "leitores escapistas", aqueles que, deslumbrados pela luz não reparam nas arestas cruas, que fascinados pelas cores perdoam a tosca utilização dos pincéis, aqueles que dispensados de pensar, esquecem como isso se faz. Mas não gosto dessa definição, porque não encontro nenhum mal intrínseco na literatura escapista ou na leitura pelo mero prazer imediato.

Poderíamos falar em graus de exigência de leitores, mas isso acaba quase sempre numa contraposição entre a dita "literatura séria" e a "literatura popular". Parece-me que é mais ou menos aceite que esta última - onde nasceram e cresceram os géneros do Fantástico - são literaturas onde a recompensa emocional/intelectual é mais imediata, não carecendo de grandes mediadores culturais a fazerem a ponte entre o texto e o contexto social - mas também isso é enganador, de tal forma sofisticadas se tornaram as literaturas de género e tão vácuas, repititivas e simplistas se tornaram as manifestações do mainstream.

Devemos por isso cingir-nos ainda ao jogo e à forma como é jogado. Sobretudo quando estamos a braços com um debate alargado sobre o futuro do género em Portugal. Várias propostas mais ou menos ambiciosas, mais ou menos batidas, foram lançadas sobre a mesa. Lemos - surpresos - uma tentativa de efectuar clivagens entre uma imaginada velha guarda do fandom e um grupo de jovens supostamente activos que querem criar o seu próprio Fantástico, sem os entraves que parecem perceber oriundos dos que os antecederam. Mas, para além das intenções, pouco mais se vê. Ora, mais do que uma clivagem geracional - afinal, aqueles que agora são referidos como "velho fandom", oscilam entre os vinte e poucos anos da Safaa Dib e os extremamente lúcidos oitenta e tantos do António de Macedo - afigura-se-me haver uma certa clivagem de formas de jogar o jogo da literatura.

Nomeadamente, assistimos ao surgir de uma nova geração de fãs que, sorvendo as referências no imediatismo voraz da internet, parecem prescindir de uma mediação contextual do que se lê. Uma geração não só avessa à necessidade de crítica literária, mas incapaz de proceder a uma crítica literária. Uma geração que lê apenas pelo prazer que lhes confere o mínimo denominador comum da leitura (ou mesmo da própria cultura). Esta é, uma perspectiva demasiado redutora e desde já afirmo que tal não é a situação generalizada desta nova geração. Se calhar não é sequer uma situação maioritária. Mas que é uma tendência muito forte é, porque assenta numa total incompreensão dos protocolos de leitura do Fantástico.

Um dos pontos que foi aflorado no recente debate, foi o do estado da crítica. Disse-o aí, e repito-o aqui: a crítica séria do Fantástico é inexistente em Portugal, apesar dos inúmeros blogues que se dedicam à divulgação do que se vai publicando. É claro que não podemos exigir de bloggers amadores - no sentido de não remunerados profissionalmente - a dedicação que é necessária à análise crítica de uma obra de FC, de Fantasia ou de Horror. Mas também não nos podemos deixar tombar pela ladeira oposta, que é a resvaladiça ladeira da opinião. Sobretudo a de uma opinião assente exclusivamente nos critérios subjectivos do gosto.

O Luís Filipe Silva, como sempre certeiro no momento e na oportunidade, resolveu mostrar, através de um exercício crítico, como é que a coisa se faz. Apesar de ter assinado um dos contos mais interessantes publicados este ano entre nós, resolve desfazê-lo com abandono, suscitando questões que seria normal os leitores colocarem perante o texto. Porque essa é a forma correcta de jogar este jogo: porque a literatura não deve ser recebida acriticamente numa escala de mero prazer emocional/sensorial. Um texto literário é sempre o resultado de uma série de escolhas de quem o escreveu. Essas escolhas nem sempre são as melhores, e por vezes cabe ao leitor encontrar as soluções que teriam enriquecido o texto, reconhecer as escolhas que foram feitas e porquê, e avaliar o resultado final contra os milhares de textos fantasma, de meros potenciais, que lhe passaram pela cabeça ao lê-lo.

Só assim os autores podem melhorar o que escrevem. Borges dizia que "todos julgamos os outros por aquilo que escreveram, mas esperamos ser julgados por aquilo que queríamos ter escrito". É altura que todos sigamos um mesmo critério. É imperativo, para que possamos crescer.

terça-feira, 21 de julho de 2009

O Círculo de Leibowitz: Adiamento


A todos aqueles que aguardavam ansiosamente a apreciação que o CÍRCULO DE LEIBOWITZ prometeu para hoje da obra The Fifth Head of Cerberus (1972) de Gene Wolfe, apresento as minhas desculpas. Com toda a actividade em torno da celebração da alunagem, e a inesperada participação no debate organizado pelo Correio do Fantástico e pelo Stranger in a Strange Land sobre o presente e incerto futuro do Fantástico em Portugal, não me foi possível terminar uma crítica aceitável e capaz de estar à altura do título proposto. A pedido meu, e excepcionalmente, o CÍRCULO aceitou adiar esta etapa para o próximo dia 31 de Julho. Assim, os leitores interessados em participar, poderão aproveitar ainda para ler esta curta mas brilhante novela.

Ainda falando no debate e nos propósitos manifestados por todos os intervenientes, sinto-me obrigado, também a título excepcional, a chamar a atenção para os esforços dos quatro autores que o Blade Runner convidou para assinalar a alunagem da Apollo 11. Dois desses autores, dois dos nomes mais conhecidos do Fantástico nacional, escreveram dois contos propositadamente para assinalar a data. Acho ao mesmo tempo curioso e lamentável, que todos aqueles que tanto afinco manifestaram no debate e que tanto protestaram admirar e defender os géneros do Fantástico, não tenham ainda comentado os contos e discutido o seu conteúdo e qualidade. Honra seja feita ao Roberto Mendes que o fez pessoalmente, por e-mail pessoal, com uma homenagem muito própria e que aqui agradeço publicamente.

Terminando também esta etapa, acho que todos os membros do fandom nacional deveriam ler este pertinente, honesto e sincero post do Rogério Ribeiro. Sendo um dos nomes mais visíveis e activos do Fantástico, editor de um fanzine pioneiro, inspirador do projecto BRIGADAS FC e co-organizador do Fórum Fantástico, soube rapidamente tornar-se indispensável ao Fantástico português e conquistar o respeito de todos os membros do fandom. A sua opinião é sempre importante. Dadas as circunstâncias em que entendeu manifestá-la, é-o ainda mais. Leiam o texto e reflictam sobre ele. Se conseguirem dominar a curiosidade, evitem ler os comentários. Apesar da elegância e postura do Rogério, o espectáculo volta a ser deprimente.

segunda-feira, 20 de julho de 2009

The Moon is a Dashing Mistress


Para todos aqueles que acompanharam este blogue ao longo do mês de Julho deve ter ficado clara a admiração que nutro pelo Programa Espacial Norte-Americano, pelas missões Apollo em particular, e pelo fascinante período histórico em que decorreram. Foi uma época única, de objectivos ambiciosos, resultados concretos, actos terríveis e promessas generosas. Na década em que a América perdeu a inocência, também a Humanidade atingiu o estado adulto. Foi, tanto quanto possível, para partilhar um pouco desse meu fascínio que propus ao Luís Corte Real e à Saída de Emergência a organização da antologia COM A CABEÇA NA LUA. É-me, por isso, tremendamente gratificante ver o resultado final nas livrarias. Tão gratificante quanto ver que pela primeira vez a infosfera, o panorama televisivo e a internet estão a fervilhar de comentários, documentários, referências e programas alusivos a um evento digno de todo esse hype: a chegada do Homem à Lua. Um momento que me parece tanto mais grandioso quanto o súbito abandono de uma exploração e colonização cadenciada da Lua e do sistema solar o faz parecer quase mítico. Em breve, não o conseguiremos distinguir - ou as gerações futuras não o conseguirão distinguir - da ficção científica de que parece ter saído.

Também por isso é gratificante ler os textos que o António de Macedo, o Luís Filipe Silva, o David Soares e o João Barreiros escreveram para assinalar este evento, indo muito além daquilo que lhes foi proposto. O meu muito obrigado aos quatro por isso. Enquanto houver estes feitos para assinalar, e autores destes para os assinalar, nem o Fantástico, nem a FC correm o risco de desaparecer.

Por último, a Antena 1 passou hoje uma entrevista comigo, conduzida com grande simpatia pela Ana Aranha, a propósito da publicação de COM A CABEÇA NA LUA e com o fito de assinalar o grande salto que a Humanidade conseguiu dar em 20 de Julho de 1969. Quem não tiver tido a oportunidade de a ouvir durante o dia, ela encontra-se já disponível aqui.

Comemorando Apollo 11: João Barreiros


O SÍNDROMA DE ABRAÃO

por João Barreiros

O passado, como dizia o poeta, é de facto uma terra estranha. E tão cruelmente ingénuo que até custa a crer. Nesses tempos ainda pensávamos que era possível sobreviver a um ataque nuclear agachados por detrás de um banco de escola, com uma patética folha de jornal a cobrir-nos a cabeça. Hoje em dia é difícil perceber como foi possível, pobres tontos que nós éramos, imaginar que as estrelas seriam um dia nossas, pelo simples facto de que alguém deu o primeiro passo, (melhor diria um tropeção), e calcou a poeira lunar com a marca indelével de um traseiro? Como se ela (a poeira) não estivesse já marcada, desde há milhares de anos, pelos contornos de outras botas, pinças, trilhos, rodízios, cremalheiras e radículas de cristal? Ainda há poucas horas fomos informados, de uma vez por todas, que os futuros deixaram de cantar. Que as estrelas nunca serão nossas, pois já pertencem a outros, talvez às inteligências frias dessas Singularidades Impassíveis, na opinião de alguns místico-gasosos, ou aos tentáculos desses Monstros de Olhos Esbugalhados que tanto deliciaram a FC pulp da primeira metade do século XX. Se quiserem a minha opinião, a história da espécie humana, tal como nós a conhecemos, terminou quarenta anos atrás, no Verão de 1969. Agora a humanidade não canta, antes grita, pois a nossa espécie vai ser obrigada a pagar com juros aquilo que julgou ser prendas dos deuses. Permitam-me o lugar comum: Quem ignora as lições da história vai ter de repeti-las ad nauseam.

Quando Armstrong deu aquele pequeno trambolhão de que todos os homens se orgulham, activou sem querer aquilo que esperava por nós, em absoluta quietude, há três milhões de anos. Tal qual fazem aqueles os piolhos que aguardam pelo sangue quente de uma vaca, suspensos nos galhos de uma árvore. Os piolhos não estão vivos (pelo menos segundo os padrões humanos) mas também não estão mortos. Apenas em stand-by, tal qual as flores meméticas. Em boa verdade, mal Armstrong se estatelou no solo lunar, abriu caminho a uma sinistra Primavera que logo fez esquecer um Inverno de silêncio que poderia ter durado para sempre. Vá-se lá saber o que activou as flores. Como se isso fosse importante, a la longue. Como se a resposta não estivesse escondida numa das páginas secretas da Enciclopédia, disponível para quem se queira dar ao trabalho de a procurar. Especulou-se que foi a vibração anómala do solo, quando a Eagle alunou, num impacto desta vez tão diferente do choque banal de um meteorito, a acordar as sementes. Quem sabe se não teriam sido as micro partículas de ADN coladas ao revestimento exterior do escafandro, ou uma variação anómala de temperatura a contrastar com o frio ambiente. Há que diga que as radículas detectaram uma lufada química dos jactos de atitude do módulo. Outros afirmaram a pés juntos que o principal responsável foi uma baforada de CO2 expelida pelos circuitos de reciclagem do escafandro.

Que interessa isso? Basta dizer que as flores acordaram. E ao acordar, cravaram as raízes no regolito lunar e estenderam as pétalas rígidas e sedosas na direcção do sol. O Mar da Tranquilidade encheu-se em apenas poucos minutos de um fulgor coruscante. E assim despertas, como se fossem girassóis, viraram-se para o primeiro astronauta, para saudar a sua gloriosa e um tanto ou quanto ridícula chegada. De um momento para o outro, o Mar da Tranquilidade encheu-se de reflexos cromáticos. Em poucos minutos a Eagle ficou rodeada por um jardim de impossível delicadeza. Não havia vento a soprar, claro está, mas as pétalas rodopiavam como caleidoscópios capturando a luz do sol e decompondo-a em milhões de reflexos prismáticos. Este estremecimento frenético provocou uma tempestade de poeira, visível da Terra, tempestade que se estendeu por vários quilómetros até vir de novo a assentar e a servir de adubo ao crescimento de uma pseudo-planta capaz de sobreviver em pleno vácuo. E perante os olhos piscos e miópicos das câmaras de TV, a humanidade inteira viu o jardim a crescer e a multiplicar-se numa progressão exponencial.

Vês como somos belas? Como é maravilhoso o jardim a que pertencemos? Esquece os calhaus que nos rodeiam. Leva-nos de volta para a Terra...

Quem não se recorda da famosa frase de Armstrong (parafraseando uma outra de um filme que a história recente amaldiçoou?): “My God, it’s full of Ships!”. E ao dizer isto, sob os múltiplos reflexos do jardim nascente, as botas falharam o último degrau e o escafandro deslizou, devagar, devagar, numa queda que quase custou a vida ao seu utilizador, até vir bater na poeira ainda há pouco revolvida pelos jactos de atitude do módulo Eagle.

Claro que o astronauta tombado na poeira, com os pés a espadanar como uma barata tonta, esqueceu-se de debitar frases memoráveis imbuídas de um humanismo pegajoso e praguejou em alta voz aquilo que mais tarde as radiodifusões censuraram, mas que todos nós ouvimos perfeitamente (pelo menos aqueles que estavam nesse momento colados aos ecrãs da TV): shit, fuck! I’m done!

A definição das câmaras de TV era, à época, minimalista. A imagem de um pobre Armstrong a tentar levantar-se de uma queda vergonhosa, foi tudo o que conseguíamos ver durante a histórica emissão nocturna. Pedro Moutinho comentava o óbvio, e Eurico da Fonseca procurava explicar que os degraus da escada podiam estar escorregadios devido às partículas de gelo. E que era perigoso, mesmo muito perigoso, descer assim, num passo descuidado, sobre as rochas virginais de um novo mundo. Virgens uma história! Ninguém conseguiu perceber o sentido da exclamação de Armstrong, a não ser os que já tinham visto o filme 2001. Algures, no outro lado do mundo, Clarke, devia estar a esfregar prematuramente as mãos de contente, aguardando pelas primeiras imagens da proverbial Sentinela e um aumento substancial da sua conta bancária. Infelizmente para ele e para todos os optimistas que mais tarde vieram a criar a religião do Saganismo Eufórico, o Mar da Tranquilidade não estava pejado de Monólitos negros, mas sim com as carcaças dos contentores, vindos dos Impérios do Centro da Galáxia, contentores que em tempos deveriam ter instalado e distribuído as sementes por todo o solo lunar. Carcaças cinzentas, reflectoras de radar, invisíveis aos telescópios da distante Terra. Carcaças miméticas de módulos de von Neumman. Agora, poucas horas depois da alunagem, já quase ocultas pelo florescimento dos jardins de cristal, podiam ainda ver-se restos colapsados de distribuidores, tubagens, escavadoras, catapultas, domos ecosféricos (furados pela passagem implacável do tempo), templos subterrâneos cheios das múmias aracnóides dos operadores alienígenas (ou quem sabe, apenas e tão só simples bioconstructos, em nada semelhantes à verdadeira forma de quem os enviou). Quem quiser saber mais, que consulte os ficheiros da Enciclopédia, e isso depressa, antes que os serviços até agora gratuitos ganhem outro rumo.

Ao fim e ao cabo não há pachorra para investigar aquilo que julgávamos estar disponível para sempre... O que se passou foi que, em vez de rochas aborrecidas e monótonas, os contentores do módulo encheram-se das mais belas corolas que lhes foi possível recolher. Algumas foram postas em isolamento, apenas tocadas pelas luvas blindadas dos astronautas. Outras, num daqueles actos de criminosa negligencia, foram levadas para a cabine de pilotagem e acariciadas pelas mão nuas e seborrentas dos dois astronautas. E a Enciclopédia integrada na estrutura cristalina das pétalas das pseudo-flores, contaminou-os, com os memes metagnósticos de uma civilização trans-galática. Uma multitude de Nanócitos exógenos passaram-lhes através da pele, depois para o sangue e finalmente para as zonas vicariantes do cérebro. Os lobo pré-frontais explodiram numa glória de misticismo e de sonhos húmidos de poder. Duas horas de delírio febril foram suficientes para activar os primeiros protocolos de comunicação. Ficheiros inter-activos começaram a explicar-lhes de viva voz as respectivas funcionalidades. E enquanto explicavam como era possível ter acesso a quase tudo o que era possível saber, os astronautas, (que ainda não tinham deixando de recitar estrofes da Bíblia à guisa de vade-retro) desobedeceram às ordens de Houston, que lhes aconselhava um suicídio altruísta a bem de toda a espécie humana, dispararam o módulo até uma órbita cis-lunar, acopolaram-se ao transportador, passaram as viroses meméticas ao piloto solitário e arrancaram na direcção da velha Terra. Durante toda a viagem de regresso, sempre em comunicação com Houston, (mas surdos a qualquer pedido que lhe exigia que fossem razoáveis e que se deixassem morrer) foram reconstruindo, remodelando, reformatando, todos os pequenos bugs e deficiências do módulo lunar, tornando quase impossível um fracasso, um acidente, um erro que poderia degenerar em catástrofe. As vozes amigas da Enciclopédia estavam sempre com eles, sugerindo, alvitrando, recomendando. Quando dormiam num sono dos justos, (sim, porque a Enciclopédia também possuía arquivos de auto-reparação nos organismos dos seus utilizadores), os três astronautas sonhavam com Impérios Galácticos, visões divinas, êxtases místicos e momentos de futuras erecções que nem as primitivas cantáridas poderiam alguma vez superar.

O resto é história. A Enciclopédia chegou à Terra e não houve censura que lhe pudesse pôr cobro. Porque mesmo em isolamento, os astronautas deixaram memes nas águas do oceano, nos assentos do helicóptero que os transportou até ao porta-aviões, nas mãos enluvadas dos médicos que os examinaram. E embora a carga que viajou no interior dos contentores do módulo tivesse sido praticamente destruída, a verdade é que sempre sobrou qualquer coisinha. Técnicos, marinheiros, agentes do FBI levaram para casa, escondida nas solas dos sapatos e nas dobras da roupa, uma informação que deixou de ter segredos seja para quem for.

As flores começaram a aparecer e a reproduzirem-se sem controlo, poucas semanas depois da amaragem, nas praias da Florida, nos jardins públicos de Miami. A tropa meteu-se ao barulho, armada de lança-chamas e (pobres idiotas) toneladas de DDT. Mas não é assim, como chamas e químicos, que se dá cabo de uma invasão alienígena. Todos os contaminados (aqueles a quem a Enciclopédia passou a prestar serviços) passaram-se para o inimigo. Guardas-marinha, os médicos que examinaram a saúde hercúlea dos astronautas, desde logo seduzidos, distribuíram, intencionalmente ou sem querer, as sementes rígidas escondidas nas corolas solúveis de todas as flores.

Houve quem construísse balões de ar quente ligados a uma cestinha de pétalas vivazes, e os soltasse depois ao sabor do vento e da História. Houve quem construísse pequenos barcos impulsionados por placas solares (montadas nas garagens e oficinas de vulgares cidadãos, como manda o figurino) e os deixasse seguir pelo Oceano fora. Houve quem fabricasse pequenos foguetões preparados para explodir e disseminar sementes a quilómetros de altitude. Nesses anos sessenta não havia meios físicos capazes de controlar uma pandemia. No final do Verão de 69 todo o continente Americano passou a ter acesso a uma troca de dados sem limites.

Dois meses depois Nixon demitia-se, pois não havia segredo que pudesse esconder-se de uma troca livre e franca de informação. Escritores, compositores, poetas, comediantes deixaram de receber direitos das suas obras, pois estas, graças à divulgação anárquica da Enciclopédia, entraram em todas as cabeças, mesmo antes de serem editadas em papel ou gravadas em vinil. Milhares de casais divorciaram-se ou chegaram mesmo a degolar-se, no pior dos casos, pois a verdade é que deixou de haver segredos íntimos, logo que as memorias passaram a ser livremente trocadas. Poderia ter sido o fim da civilização, até que alguém descobriu uma sub-pasta no Arquivo Central da Enciclopédia onde era possível activar alguns protocolos de privacidade. Nas escolas, os alunos passaram a saber tudo, mesmo antes do professor abrir a boca. Nenhum teste, nenhum exame, nenhuma prova conseguia escapar ao facto que todos os conhecimentos, já digeridos e integrados em estruturas cognitivas, poderiam ser aplicados à resolução de qualquer tipo de problemas, mesmo os mais complexos.

E a Enciclopédia, compactada nas sementes carregadas de nanócitos mais as respectivas flores contaminantes, atravessaram o Oceano e chegaram à Europa. Há quem diga que os Americanos bombardearam a União Soviética e a China com toneladas de sementes na barriga de bombardeiros stealth, simplesmente para acelerarem o processo da desintegração do Comunismo. Verdade seja dita que o Muro caiu. Que a KGB se auto-destruiu numa única noite de chacina inter-pares capaz de lembrar a outra noite das Facas Longas. Querem saber mais? Procurem os Arquivos correctos.

***

Quanto a mim, acedi pela primeira vez à Enciclopédia numa tarde de Agosto, estendido na praia, a secar as gotas de água sobre uma toalha. Estava nesse momento sozinho, (pois quem quer saber de um puto magricelas e míope), apenas na companhia do Homem Demolido do Bester. Qualquer coisa picou-me o rabo. E eu, julgando tratar-se de uma concha ou a tampa de uma lata, ergui a toalha, enfiei a mão na areia grossa e peguei na flor por uma das pétalas. A principio, apesar de tanta fotografia, não cheguei a perceber do que se tratava. Estávamos em Portugal, sob o peso da bota, e os resultados dos testes de exame apenas nos chegavam através da Rádio Marrocos Livre. A pétala parecia-se com um fragmento de bolo de açúcar caramelizado. A luz da tarde penetrava-a de um lado ao outro em delicadas cintilações. A superfície, a princípio elástica e resistente ao toque, começou a amolecer-me entre os dedos. Uma sensação de frescura colou-se-me à mão e foi-me crescendo pelo braço. Pisquei os olhos., engoli em seco, mas a sensação não foi de agonia mas sim de um vago prazer, quase sexual. Pisquei os olhos porque os óculos começaram a incomodar-me. Tirei-os para os limpar, com um fragmento de pétala semi-dissolvido ainda agarrado aos dedos, e descobri, para meu espanto, que agora via melhor sem eles, que a miopia tinha deixado de me atormentar. Olhei para o mar e de súbito veio-me à memória todos os contaminantes químicos das gotículas de água que ainda me cobriam o corpo. Soube que a praia estava contaminada pelas salmonelas provenientes dos eflúvios de um matadouro próximo e que deveria ser enviada uma reclamação contundente à Junta de Freguesia. Percebi a natureza tóxica de todos os contaminantes de um oceano aparentemente límpido. Calculei a velocidade das correntes da baixa-mar, e a velocidade em nós dos navios que passavam ao longe, para lá da barra. Soube que horas eram sem sequer deitar uma olhadela ao relógio ainda guardado no saco. Lembrei-me do final do romance do Bester apesar de ainda não ter chegado a meio. Vieram-me à memória todos os estúpidos erros que cometi, há semanas atrás no meu Exame de Matemática. Agora conseguia, sem o menor esforço, recitar toda a tábua de logaritmos. Conclui então que a Enciclopédia estava agora comigo, para sempre. Na cova da mão, entre os resquícios das pétalas dissolvidas, repousava apenas o esferóide de uma nova semente, semente essa que seria o meu dever plantar em qualquer outro lado, longe dali. Levantei-me a tremer de entusiasmo. Toda a gente na praia devia estar a dormir apoiada num conjunto subterrâneo de radículas. Até ao final da tarde, as primeiras pétalas haveriam de despontar entre os grãos de areia, beatas de cigarro e restos de sandes abandonadas.

O governo caiu semanas depois, como é costume caírem as ditaduras que controlam a informação perante a Mente Colectiva em que a Enciclopédia nos transformou. Imagino os segredos da DGS a correrem pelas bocas do mundo. Marcelo Caetano a tremer à beira da catástrofe. Lembro-me do único discurso coerente feito pelo Presidente Américo Tomaz, gramaticalmente bem construído, a pedir desculpas e a despedir-se do poder.

***

A Utopia resultante desta Felicidade Compulsiva durou 40 anos.

No final da tarde, 20 de Julho de 2009, hora local, a Enciclopédia abriu uma nova mensagem à escala planetária. Quer isto dizer que todos nós, a espécie humana, recebemos a mesma informação, precisamente ao mesmo tempo.

As vozes delicodoces da Enciclopédia (para quem gosta de a ouvir em circuito áudio) explicaram-nos que o período de assinatura gratuita estava prestes a terminar. Que a partir do dia 30 de Julho os serviços seriam cancelados, os aplicativos dissolvidos, os jardins de flores meméticas reabsorvidos a não ser que a assinatura fosse renovada, mas que desta vez era preciso pagar.

Seguiram-se os protocolos da renovação do contrato. E porque a Enciclopédia funciona segundo princípios democráticos, a opção deveria partir da escolha consensual de sessenta por cento da população mundial. Às dezoito horas do dia 30 de Julho, todos nós deveríamos dizer se sim ou se não. E que o preço era meramente simbólico, apenas uma questão de respeito perante as inteligências que tanto tinham feito pela espécie humana.

***

Quem quer que tenha enviado as flores conhecia a história da humanidade. Sabia o que os Gregos fizeram aos Troianos com a oferta irrecusável de um certo cavalinho de madeira. Sabiam o que aconteceu aos índios americanos quando receberam cobertores dos colonos contaminados com malária. Oferecemos de mão beijada arados de ferro às tribos do Norte de África com os conhecidos resultados de desertificação. De facto, a Enciclopédia poderia ser considerada uma arma à escala trans-galáctica construída para sufocar as civilizações da Periferia. A verdade é que, desde há 40 anos nunca mais produzimos, inventámos ou criámos nada que não estivesse já incluído nos protocolos da Enciclopédia. Tornámo-nos dependentes de uma droga. E ninguém vai conseguir fazer a ressacagem a tempo de nos salvar do colapso final.

***

Afinal quem é que vos disse que as civilizações do Centro, lá pelo facto de serem tecnologicamente mais avançadas, possuem valores éticos de natureza quase divina?

São sádicos, são voyeurs, deleitam-se, tal como nós, com os combates até à morte dos cães e dos grilos em arenas. Nós, humanos, não passamos de um mero espectáculo que essas inteligências frias contemplam de muito, muito longe. A salivar perante futuros prazeres.

A Enciclopédia deve ter meios de lhes fazer chegar toda a informação do que se passa no nosso planeta em apenas poucos minutos. Algures, no sistema operativo das flores meméticas, deve estar incluído um ansible.

Quem querem eles como paga da renovação da assinatura?

Muito simplesmente o sacrifício anual (e quanto mais sangrento melhor) de 5.000 crianças no topo das pirâmides de Chichen Itza. E tudo isto filmado e representado a preceito. Se as criancinhas forem executadas pelos pais, tanto melhor, mais bela e delicada será a estética do evento. É importante que seja escolhidas a dedo entre as mais belas e saudáveis. É recomendável que se lhe arranque o coração ainda em vida. E depois as tripas. E que os parentes bebam uma taça do sangue derramado à guisa de respeito por quem manda.

***

Temos poucos dias para decidir mas, conhecendo como conheço a espécie humana, já sei qual será a resposta. Cínico que sou, concluo que antes do advento da Enciclopédia, morriam mais crianças no mundo de doenças e acidentes do que estas cinco mil. No dia 30 vou cerrar os olhos e dar a minha escolha. (Não são permitidos votos em branco). Resta-nos optar entre a extinção global da nossa espécie e a simples perda de algumas células não essenciais. Estou habituado ao meu conforto, à minha felicidade sintética, não tenho filhos para criar, o problema é dos outros, não meu. Opto pela morte do Mandarim e pelo afluxo de uma gigantesca fortuna. E no próximo ano conto estar no México, a aplaudir, como tantos outros, a renovação da assinatura da Enciclopédia que afinal é o fundamento das nossas vidas.


“Os monstros existem, mas são demasiado numerosos para constituírem um
perigo. Quem é perigoso são os homens vulgares, preparados para acreditar e
obedecer sem discutir.”


Primo Levi

Comemorando Apollo 11: David Soares


A Lua ainda é um lugar misterioso…
por David Soares
A Lua ainda é um lugar misterioso…
Quarenta anos depois da primeira alunagem – depois daquela tímida tentativa de despir Selene – parece que o mundo ainda não entrou na épica era espacial que projectámos durante os anos cinquenta e sessenta do século passado: o futuro, para mal dos nossos pecados, assemelha-se, demasiado, ao presente. Ou, pior!, ao passado. A deusa ainda está vestida e adormeceu-nos, pobres pastores, de modo a conservar o pudor.
A conquista do espaço foi a última grande meta-narrativa que marcou, com um cunho distintivo, a cultura ocidental, mas, inversamente às meta-narrativas religiosas, que, infelizmente, ainda subsistem, esta, que é científica, parece ter sincopado. Não se assiste a um grande entusiasmo público diante dos progressos astrofísicos que vão sendo divulgados pela comunicação social e nos veículos da especialidade. Acho até que o espaço nunca esteve tão distante de nós, como hoje – e isso é uma pena. Talvez a Lua seja, com efeito, uma amante cruel.
Ou talvez nos falte uma comunicação social que conheça a linguagem científica e saiba transmiti-la sem a associar a imagens e conceitos, ditos divertidos, pensados para a tornar degustável pelos espectadores. Talvez nos falte uma nova grande meta-narrativa científica que sirva de contrapeso aos absurdos da fé. (O burburinho criado em volta do novo super acelerador de partículas do CERN quase serviu, mas os meandros da física quântica são demasiado insondáveis para serem compreendidos, e amados, pelo grande público.)
Em suma, falta-nos olhar outra vez para a Lua – de modo simbólico, também, pois trata-se de um local onde já estivemos e pode ser um lugar que sirva de modelo a viagens mais arrojadas.
A Lua ainda é um lugar misterioso… Na verdade, ainda é virgem. Apenas a acariciámos – falta cumprir-se a sua conquista.
Quarenta anos depois da primeira alunagem, ainda não despertámos para essa conquista. Talvez devêssemos aproveitar o facto de ainda estarmos a dormir… para sonhar!
Como está expresso no título da antologia de contos de ficção científica organizada pelo João, e publicada pela Saída de Emergência, precisamos de pôr a cabeça na Lua. Já lá pusemos o pé, mas isso não é suficiente, porque o pé não sonha.
A cabeça é que sonha.
E atrevo-me a dizer que os assuntos relacionados com a conquista do espaço são a única área da ciência capaz de fazer o público sonhar. Acredito que o futuro do discurso científico, junto da opinião pública, terá de passar por um novo sonho espacial.
Sonhar com o espaço faz da Terra um lugar melhor: mais pacífico, mais sábio e maior.
Mais sensual, até.

Comemorando Apollo 11: Luís Filipe Silva



A Verdade Sobre a Ida à Lua


por Luís Filipe Silva


1.º Exercício de escrita: três astronautas embarcam na primeira viagem à Lua da espécie humana. Descreva a viagem sem se referir aos astronautas, à Lua nem às circunstâncias do evento.

Nunca o iriam deixar em paz.

Passos nervosos no asfalto que conhecia tão bem. Ele a apressar o movimento da chave entre bolso e porta, a atirar os livros para o assento do lado, a bater com os joelhos na dureza do encaixe do volante.

Sr. Collins, sr. Collins!

A forçar o pequeno Fiat a um acordar doloroso.

Sr. Collins, queremos falar consigo!

Subitamente a mão contra a janela subida, a bater, a implorar.

(Ocorre-lhe fugazmente a mão desesperada de Gus contra uma outra janela, reproduzida em ficções televisivas.)

Apenas duas palavras, sr. Collins, é só o que lhe peço.

O velho Quattrocento a reagir no último momento e ele a pisar com força o pedal, quase derrubando a mulher contra o cameraman.

Sair daquele sítio, fugir daquele instante, regressar ao universo que edificara em torno da vida.

Ficar na Terra.

***

Conspiraram para o cercar. Percorre os telejornais da televisão por cabo. São dezenas e ainda assim, quase em uníssono, apresentam as mesmas, antigas imagens. Desliga o aparelho, nem lhe apetece ver um outro canal. Os apresentadores e os jornalistas são jovens de mais para terem presenciado em directo – o que os move é, sabe-o bem, uma natural curiosidade mórbida acerca de um grande mistério esquecido.

Isto não é o mesmo que entrar no túmulo de um faraó morto há milhares de anos, diria às câmaras, há que respeitar a memória das famílias.

Mas não vai dizer nada. O que disser apenas lhe trará problemas. Tem uma vida calma, um emprego seguro. Não se encontra na idade dos heroísmos. Ficará sentado a aguardar que a ventania passe. Como um rochedo. Um rochedo humilde, que não se desprende da Terra. Um rochedo sem pretenções aos Céus.

***

As caras espantadas. Os olhos arregalados. Pousa a pasta com cuidado sobre a mesa. O coração bate apressado.

Bom dia, turma.

Eles entreolham-se. Uma mensagem invisível passa entre as mentes quase adultas.

Aquele Collins de que falam na TV é seu pai, avança a provocadora Susy.

Ele sente o ressurgir de uma dor muito antiga.

Isso não tem interesse. Vamos começar a aula?

São apanhados de surpresa pela veemência. Bem, ele também, na verdade. Começa a rabiscar no quadro branco. Assim, de costas para a audiência, recuperando o controlo. Ou tentando. Pede-lhes que leiam os trabalhos de casa. Ficar calado, sentado na cadeira, deixando a hora passar. A ventania passar.

O tema não ajuda. Homero e heróis e nobres feitos.

Ainda quando um soldado luta duramente, tal dureza é sentida pelo que ficou para trás, e igual honra cobre o cobarde e o bravo; o homem que nada fez e aquele que tudo cumpriu acolhem a mesma morte.

É como se tivessem apontado um holofote contra o seu assento de professor. Quente e incómodo e que lhe fere a vista.

Ouve murmurinho ao fundo da sala. Alguns olhares desconfiados, acusadores.

Só mais trinta minutos.

Entre os homens imbuídos de honra são em maior número os que sobrevivem que os que tombam em batalha, mas os que fogem não são dignos, nem de glória nem da minha ajuda.

E em que contexto é que Homero faz essa afirmação, John?

Vê a lança antes da a sentir. Vê-a no semblante do rapaz.

Os troianos eram heróis, professor, que não se deixavam assustar pela dureza da missão nem condenavam os companheiros a uma morte certa.

Eram outros o rosto e a voz, mas poderiam ser as mesmas palavras. Era Bruce, novamente.

Fica atordoado durante alguns segundos, a turma a aguardar a explosão. Mas limita-se a levantar e ir-se embora.

***

Sr Collins?

Não foge, desta vez. Não tem forças para tal.

Ela refreia-se um pouco ao notar as lágrimas.

Podemos falar? Só nós os dois?

Não é ninguém que conheça. Ninguém que lhe tenha aparecido anteriormente. Pelo menos não trouxe câmaras consigo. Isso baixa-lhe a guarda.

O que é que vocês querem? Porque é que não me deixam em paz? Não tenho nada de novo para dizer. Esqueçam de uma vez por todas o assunto. Não faço ideia do que lhe ia pela cabeça, tinha apenas oito anos.

Sr. Collins...

Imagina o que tem sido para mim viver com esta história? Ser o filho de alguém que estragou o precioso sonho americano?

Sr. Collins...

Tinha oito anos. Não pude voltar à escola. Passei todo o liceu com professores particulares. Tive de inscrever-me na faculdade com o apelido da minha mãe. Consegue imaginar como foi a minha infância?

Ela pousa uma mão sobre o braço dele. É bastante meiga e fala docemente. Ele pára de berrar.

Ninguém consegue imaginar, sr. Collins. É por isso que quero falar consigo. É a sua história que quero contar, não a do seu pai.

Ele não esperava esta resposta. Fica ali, a soluçar de pingo no nariz sobre as rugas, qual criança centenária.

Estou a fazer uma reportagem sobre vocês. Sobre os descendentes. Vou falar com Bruce e Chuck mas queria começar por si. Jerry. O que nunca deu a cara. O que ninguém conhece.

Nunca um membro da imprensa lhe tinha dirigido outro olhar que não o do desprezo e acusação, mas ela sorri.

Aceita?


2.º Exercício de Escrita: um homem revisita o passado doloroso perante uma estranha. Descreva a situação do ponto de vista do observador que está do outro lado do vidro, desconhecedor deste passado, da identidade dos intervenientes e impossibilitado de escutar a conversa.

A mulher chega sozinha. Enverga um casaco de algodão sobre uma t-shirt branca que ostenta o pregão de uma cimeira internacional sobre a fome, uma saia de folhos de cor azulada e umas sandálias pretas. Tem as unhas das mãos e dos pés pintadas de roxo quase negro, um ligeiro toque de base nas faces e o cabelo curto e encaracolado. Sob o braço direito transporta uma pasta. Quando se sentar na cozinha junto do homem, retirará desta um bloco de apontamentos, um lápis e um gravador áudio digital. Mais tarde, no decorrer da entrevista, irá descobrindo aos poucos fotografias, recortes de imprensa, revistas. O homem tomará cada um dos objectos para os apreciar, como se fossem chaves para despertar memórias. Irá demorar-se mais a cada um deles, e no fim não será capaz de os manusear sem expor comoção. A última imagem é de um rosto de jornal integralmente preenchido por uma fotografia a preto e branco. Ilustra um possível centro de engenharia, pois vêem-se paredes brancas com sinalização orientadora e avisos; vários homens de meia idade, com camisas brancas de meia manga e gravatas escuras, observam a cena: dois seguranças contêm uma senhora, de boa aparência, que, assolada por uma raiva incontida, tenta pontapear uma outra mulher, de joelhos no chão e mãos a tapar o rosto; um rapazinho tenta interpôr-se entre as duas mulheres, em nítida protecção da que está caída.

O homem detém-se bastante tempo neste último item. Não fala. Começa silenciosamente a chorar.

Por sua vez, o homem, durante a conversa, apresenta as suas evidências. Vai buscar livros e gravações. Senta-se com ela a ver vídeos – em que homens vestidos de astronautas mergulham em piscinas, volteiam em câmaras centrífugas, falam para as câmaras. Um homem destaca-se sempre nestas imagens, de aspecto já não jovem mas ainda não chegado à meia-idade. Mostra-se reservado quando o filmam, talvez vítima de desconforto perante o escrutínio público. Os companheiros são mais descontraídos e parecem incitá-lo por arrastamento. O homem gesticula bastante e fala de forma animada enquanto os vídeos passam.

Numa outra tarde, pois a conversa não finaliza no primeiro encontro, serão outros os vídeos. O homem não estará tão efusivo, e vai tragando vagarosamente vários copos de bourbon enquanto fala, prostrado de forma muito quieta no seu canto do sofá. A mulher mostra-se desconfortável a partir de certo ponto e acaba por sair apressadamente antes de os vídeos terminarem. O homem mal a nota partir. Mantém-se sentado, a encarar o ecrã, no qual passam cenas atrás de cenas de momentos familiares entre um casal e três crianças de distintas idades – cenas em praias, em montanhas, em parques temáticos, no quintal, em casa. O homem acaba por adormecer com a televisão ligada e o copo tombado, o líquido a manchar o tapete.

As outras tardes foram melhores. Tinha tirado fotografias da parede, aberto baús empoeirados. Medalhas e cartas de mérito empoeiradas foram expostas, brinquedos com o formato de cápsulas espaciais, conjuntos de montar com imagens da superfície da Lua. Um gráfico detalhando as etapas da viagem. Mas estas tinham sido as primeiras tardes. Quando a mulher regressou, trazia uma câmara e um técnico. Montaram um pequeno estúdio, o homem penteou o seu próprio cabelo. Conversaram durante duas horas e meia, com duas interrupções durante as quais o técnico ajeitou o holofote e o homem esvaziou cinco garrafas pequenas de água à vista da mulher.

Depois tinha terminado. Ela despediu-se com um aperto de mão profissional, mas no fim pareceu ter mudado de ideias e cobriu este aperto com a mão livre. Disse-lhe algo muito suavemente, olhando-o nos olhos.

Ele anuiu, sem proferir palavra. Parecia muito cansado.


3.º Exercício de Escrita: uma conversa telefónica entre duas pessoas, que abordam um tema doloroso do passado. Deverá tornar-se evidente, durante a conversa, que os motivos aparentes escondem outros mais profundos, e que a redenção não se alcança sem custo. Contudo, não devemos ter acesso às reacções emocionais, aos pensamentos nem a outra informação que não seja expressa, unicamente, pelos diálogos trocados.

- Jerry? Jerry Collins?

- O próprio. Quem fala?

- Bruce Armstrong.

- ...

- Alô? Estás aí?

- Bruce?

- Sim.

- Como é que descobriste o número?

- Deu-mo a produtora. Da tua entrevista.

- O que se passa?

- Como vão as coisas?

- Como assim?

- Como vai a tua vida?

- Não falamos há quarenta anos e ligaste-me para me perguntar sobre a minha vida?

- Porque não? O que é que tu perguntarias?

- Fui suspenso da escola. Os pais ameaçaram retirar os miudos da minha aula e o reitor assustou-se. Eis a minha vida.

- Esta porra de cobertura noticiosa... Mas vai tudo mudar.

- Mudar como?

- Tens razão, não liguei para saber da tua vida. Jerry, hás-de ser contactado por uns gajos da Verdade Sobre a Lua.

- Tu e o Chuck sempre gostaram destes maluquinhos de circo. Não estou interessado.

- Estes são diferentes. São jornalistas e têm provas concretas.

- Todos eles tinham. Mas nunca se provou nada. Não estou interessado, Bruce.

- Mas vais estar. Só ainda não sabes. Não sabes que havia material ultra-secreto. Da CIA. Que só ficou disponível agora, passado o número de anos obrigatório. Eles descobriram os arquivos e têm estado a analisá-los. É um escândalo.

- Que tipo de arquivos?

- A última transmissão da Lua. Dos nossos pais. Antes de... bem, antes de morrerem.

- Todos conhecem a última transmissão dos que pousaram...

- Não, não é essa. A última transmissão de todos eles. Inclusive do teu. Depois de ter disparado o módulo de comando.

- Ele nunca...

- Foi o que nos fizeram crer. Mas na verdade interromperam a transmissão televisiva. Eles continuaram a emitir. E nunca nos disseram.

- ...

- Estás aí?

- ... Isto é mesmo legítimo, Bruce? Não é mais uma daquelas ideias...

- Os jornalistas são tipo Woodward e Bernstein. Enviaram os filmes para laboratórios do outro lado do mundo. Já lhes garantiram a autenticidade. Foram emitidos naquela noite, e nunca ninguém os viu. Quero dizer, o mundo não os viu. Apenas um punhado de autoridades no governo e na CIA estavam por dentro do segredo.

- E o que foi que disseram?

- Querem ajudar-nos a processar o Governo. Vai ser em grande, Jerry, muito em grande.

- Não: os nossos pais?

- Foi um pacto.

- Sim?

- Um pacto suicida. Combinaram durante a viagem. Combinaram não voltar à Terra. Neil e Buzz desceriam à Lua, como combinado, mas ficariam por lá, expondo a cápsula ao vácuo. Quanto ao teu pai, bem, aparentemente era suposto despenhar-se contra a superfície mas preferiu lançar-se pelo espaço. Pelo menos é o que ele diz.

- ...

- Jerry? Jerry?

- ... P-p-porquê?

- Qualquer treta sobre bombas atómicas no Vietname. Um plano maluco do Nixon. Queriam expor o caso e acabar com a guerra. Antes que houvesse uma catástrofe nuclear. Coisas da Guerra Fria, não faz qualquer sentido agora. Que grande cabrão, aquele Nixon, hein?

- Porquê? Porquê eles?

- Não sei. Mas não resultou. Conseguiram bloquear a transmissão assim que o módulo de comando do teu pai não emergiu do lado obscuro da Lua, daquela vez. E depois, claro, mancharam o nome dele. Que tinha disparado os foguetes propositadamente. Que tinha condenado os companheiros e a exploração do espaço. Afinal, era bem diferente.

- E vocês acreditaram.

- Quem?

- Tu e o Chuck. E as vossas famílias. Que o meu pai fosse capaz de fazer uma coisa dessas.

- Bolas, Jerry, não queríamos acreditar, mas que alternativas tínhamos? Éramos putos, perderamos os pais e a televisão dizia-nos que o teu tinha sido o culpado... Sabíamos lá o que devíamos pensar?

- Vão-se foder os dois. Eu também perdi um pai. Nunca vos ocorreu isso?

- Bolas, Jerry, eu entendo que...

- Não entendes porra nenhuma, Bruce. Eu perdi um pai e os amigos e o respeito público. A minha mãe perdeu o marido e ainda teve de aguentar o vexame de ver o nome dele enxovalhado por toda a gente. E a tua, a tua, Bruce. Nunca me hei-de esquecer daquele dia...

- A velhota perdeu as estribeiras, é natural...

- Vai-te foder. A tua mãe não morreu de desgosto. Andou a pavonear-se em tudo o que era talk-show, como sendo a grande viúva americana que sacrifica a família em prol da nação. Que grande farsa! Que grande farsa que tu és.

- Jerry, não te admito isto. Telefono-te para te dar estas boas notícias sobre o teu pai...

- Boas notícias? Durante anos acalentei a esperança que tivesse sido uma avaria nos foguetes, que aquilo tivesse disparado por acidente. Que os filhos da puta da NASA estivessem borrados de medo de ter feito porcaria e culpassem o meu pobre pai. Mas afinal foi um idiota com um pacto qualquer sobre uma guerra estúpida. Isso era mais importante que a família?

- Mas agora toda a gente vai vê-lo como um grande pacifista...

- Estou-me a borrifar para o que os outros pensam. Experimenta seres tu o mau da fita, desta vez, e não o grande heroi. A ver se encontras alguma justiça e perdão.

- Eu não fui heroi nenhum. Apenas não queria que esquecessem o meu pai. Não queria que terminassem o programa espacial. Jerry, se voltamos à Lua foi graças ao que eu e Chuck fizemos, ao que as nossas mães conseguiram.

- Foi mesmo? Ou era inveja, Bruce? Inveja de o meu pai ter roubado o momento de glória ao teu? Estavas tão contentinho por seres o filho do primeiro homem a andar na Lua, e eis que o meu pai, o pobre coitado relegado a ficar em órbita enquanto os outros entravam na História, se torna afinal no tipo que rouba o espectáculo e estraga a festa a toda a gente.

- Vai-te lixar, Jerry.

- Pois, finge que não te lembras de como vocês os dois gozavam comigo. O filhinho do astronauta que ia à Lua mas ficava de castigo.

- Tínhamos dez anos, Jerry! É o tipo de coisas que os putos fazem. Esquece de uma vez por todas.

- Estou-me a borrifar para a merda das gravações. Apresentem ou não apresentem, não me interessa. O que revelarem chega tarde de mais. Só interessa a reacção das pessoas. Condenaram uma pobre viuva e três crianças orfãs de pai, como se elas tivessem culpa do que ele tinha feito. O ser humano é uma besta, Bruce. Vocês são grandes bestas. E eles sacrificaram-se por isso? Que desperdício! Deixassem a merda o planeta arder. Não mereceis melhor. E certamente que não mereceis a Lua!

4.º Exercício de Escrita: um homem encontra finalmente uma paz interior e o perdão face a um ente querido, num cenário de Ficção Científica. Descreva a transformação interior sem aludir directamente a ela.

Numa abafada tarde de Novembro, em pleno Indian Summer, um homem senta-se no alpendre da sua casa com um computador portátil. Duas crianças que praticam basebol no meio da rua cumprimentam-no com alegria e respeito. Ele diz-lhes que tenham cuidado com os carros. Abre o computador e começa a fazer contas.

De vez em quando ergue a cabeça e descobre pessoas a olhar para ele do outro lado da estrada. Por vezes acena, na maioria ignora-as. Mães a passear os filhos de carrinho. Casais jovens. Turistas. Os curiosos não param.

Os mais velhos, da sua idade, ainda o olham com desconfiança, confusos com o desenrolar dos acontecimentos. É natural, e não esperaria nada de diferente.

O dinheiro chega à justa.

Todas as suas poupanças. O que a mãe lhe tinha deixado. A indemnização do processo ao Estado. O empréstimo das manas.

Mas vai finalmente lá. Ver o que o pai viu. Ver o que o fez decidir.

A mãe teria aprovado.

Quando voltar vai estar na penúria. Mas quem sabe se volta? Diz-se dos Collins que não aguentam ficar neste planeta toda a vida.

Todas as fronteiras precisam de professores para ensinar as novas gerações.

A Lua não será diferente.

Comemorando Apollo 11: António de Macedo


«…com uma rapariga, numa noite quente de Verão…»

por António de Macedo


Esta frase foi surripiada de Heinlein, tem a ver com a Lua e com o luar e deixo ao arguto leitor a empreitada de descobrir a que conto pertence!

A Lua, deusa inspiradora e romântico luminar dos namorados, foi profanamente espezinhada pela primeira vez, há quarenta anos, por grossas botas humanas fabricadas no planeta Terra — numa noite quente de Verão.

Milhões de pessoas vibraram com o tal «gigantesco passo da humanidade». Nesse mês de Julho de 1969 eu tinha acabado de completar 38 anos, e trabalhava então a cem por cento como profissional de cinema e televisão, realizando todo o tipo de filmes de forma quase imparável, quer filmes de ficção de longa-metragem quer documentários industriais, culturais, turísticos, etc., já para não falar nos incontáveis spots publicitários de 30 segundos a 1 minuto (sempre filmados, nessa época, em formato profissional de 35mm) para passar nos cinemas e na TV.

No ano anterior tinha-me sido atribuído o Prémio Paz dos Reis pela minha curta-metragem Crónica do Esforço Perdido, sobre as vantagens de uma ginástica descontractiva chamada «ginástica de pausa», praticada durante 10 a 15 minutos no próprio ambiente da empresa ou do serviço público — coisa que parece estar de moda outra vez e chamam-lhe agora «ginástica laboral». (Entre parênteses, vi há poucos dias uma reportagem televisiva onde se dizia que era inovação recente vinda do Japão e da América, quando na verdade existe há mais de 40 anos e veio da Suécia e da Rússia…) A conquista da Lua — a verdadeira, tecnológica, e não apenas ficcional — passou por várias fases; uma das mais curiosas, talvez produto da «guerra fria», fez alguma carreira nos finais dos anos ’40 e nos anos ’50: conceituadas revistas científicas publicaram artigos onde se demonstrava que «quem conquistasse a Lua dominaria a Terra», porque ainda se pensava que uma bateria de mísseis na Lua estaria em posição ideal para fazer pontaria e disparar sobre qualquer nação na Terra! (Eu sei porque li artigos desses). Hoje, claro, podemos dar-nos ao luxo de rir um pouco de tamanha ingenuidade.

Em 1969, enquanto os Americanos ultimavam afanosamente a viagem à Lua na conhecida competição com os Soviéticos, estava eu a acabar um documentário turístico sobre Albufeira e a iniciar um outro, industrial, sobre a extinta Sociedade Nacional de Sabões, que entre muitas coisas, e além de sabões, fabricava margarinas… Ao mesmo tempo, de permeio com as minhas idas e vindas entre Madrid e Lisboa para negociar com o produtor espanhol Montana Films S.A. a futura coprodução da minha longa-metragem A Promessa, escrevi o guião da minha longa-metragem contestatária Nojo aos Cães que filmei nos princípios do ano seguinte, e ia mantendo um estimulante convívio com David Mourão-Ferreira, Natália Correia e Almada-Negreiros para a preparação dum filme sobre este último, que comecei a realizar nesse mesmo ano de 1969 e concluí em 1970, com o título Almada-Negreiros Vivo Hoje.

Claro que a anunciada e iminente viagem à Lua me excitou como a qualquer mortal que se preze, finalmente ia-se concretizar a profecia de H. G. Wells em The First Men in the Moon (1901), mais do que a defensiva aventura de Júlio Verne que pôs os três exploradores do espaço a dar umas voltinhas em torno da Lua sem se atrever a pousar nela, e logo se escapuliram de regresso à Terra. O produtor de cinema com quem eu então trabalhava era o Francisco de Castro, e no dia previsto para a chegada à Lua pedi-lhe emprestada uma câmara profissional de 35mm e película, ele cedeu-me uma e outra, fui para casa e liguei o aparelho de televisão (ainda a P-&-B), e fui vendo as empolgantes notícias à medida que o grande evento se aproximava, enquanto preparava o tripé, a câmara, focava a lente, e ajustava o enquadramento para apanhar todo o ecrã do televisor — tinha de ser muito preciso, só dispunha de um rolo de 120 metros de película 35mm, o que daria para quatro minutos de captação de imagem! Em suma, eu dispunha apenas de 240 segundos para filmar os momentos cruciais. A certa altura da noite os meus filhos António e Susana (que tinham então nove e sete anos respectivamente) foram para a cama, e só fiquei eu com a minha mulher, a pé firme, sem despregar olho do pequeno ecrã.

De vez em quando filmava alguns segundos, para ir localizando a aproximação, até que por volta das quatro da manhã surge a famosa imagem de Armstrong saltando para o solo lunar! Claro que filmei tudo e ainda sobejou alguma película para filmar mais uns saltos na Lua, incluindo Buzz Aldrin que se reuniu a Armstrong 15 minutos depois. Segundo os dados oficiais, o módulo pousou na superfície lunar em 20 de Julho às 20h 17m do tempo universal (UTC), e os primeiros passos na Lua, por Armstrong, foram dados às 3h 56m da madrugada do dia 21 de Julho, de acordo com a hora legal portuguesa.

Eu nessa época morava perto da Tóbis (estúdio e laboratório cinematográfico), de modo que fui a correr às seis da manhã, logo que a Tóbis abriu, pôr a película a revelar, e às dez horas desse mesmo dia já pude ver em projecção, e mostrar no estúdio do Francisco de Castro à entusiasmada equipa, as históricas e inolvidáveis imagens.

Já agora permita-se-me um desabafo, para concluir: tenho para mim que o grande feito desse dia não foi tanto a viagem à Lua, antevisionada, prevista e sonhada por inúmeros autores, quer de séculos antigos quer da era da ficção científica; o que me deixou mais boquiaberto, porém, foi aquilo que nenhum autor de FC alguma vez previu ou imaginou sequer: no próprio instante em que um astronauta chega pela primeira vez à Lua, as imagens do histórico evento são transmitidas em directo para o planeta Terra, e, mais, captadas por vulgares televisores domésticos, podendo ser observadas simultaneamente por 600 milhões de terráqueos!!!

Mais do que um grande passo da era espacial — foi sobretudo o grande passo da era da comunicação.

NOTA APARTE — As estranhas palavras «alunar» e «alunagem» (que devem ter surgido por influência jornalística do francês alunir e alunissage: até aos anos ’60 o francês ainda era a língua cultural de referência por estas bandas) suspeito que resultem de uma confusão derivada do facto de a palavra «terra», em português, não só designar o nome do nosso planeta, mas também significar o solo, o terreno, de quaquer planeta (ou satélite) minimamente sólido, incluindo o solo da Lua, da Terra, de Marte, do Ganímedes de Júpiter, do Titan de Saturno… e de muitos outros. «Aterrar» não significa «pousar no planeta Terra», mas simplesmente «pousar na terra, no terreno» seja de que planeta (ou satélite) for. Em inglês tal confusão não acontece, porque os anglófonos distinguém entre land e Earth. Em inglês, «aterrar na Lua» diz-se naturalmente to land on the Moon, e a tal «alunagem» é moonlanding (= landing on the Moon, aterragem na Lua). Se insistirmos em neologismos como «alunar» e «alunagem», então temos de ser coerentes e passar a dizer «amartar» e «amartagem»; «avenusar» e «avenusagem»; «amercuriar» e «amercuriagem», etc., etc., e nem quero pensar nos incontáveis planetas extra-solares que talvez um dia recebam a nossa visita — os nossos dicionários vão ficar gigantescos com milhões de palavras novas… e completamente inúteis.